O ESTUDO DA FILOSOFIA

TEMAS E TÉCNICAS DA FILOSOFIA

 

Textos de uso lectivo

 

Introdução: o que é a filosofia?  

 

Texto 1

 

José BARATA-MOURA

 

«O pensar não é uma coutada exclusiva. Com acesso reservado. Aonde somente aos sócios do «Clube da Filosofia», e com a quotização em ordem, é permitido andar à caça. Ainda que Nicolau de Cusa – manejando a metáfora venatória com calejado ofício – tenha chamado aos filósofos: «caçadores de sabedoria» (venatores sapientiae) (Cf. NICOLAU DE CUSA, De venatione sapientiae (1463), I, n. 5).

O matagal para as expedições cinegéticas desta índole é campina aberta. O porte de arma requer jeito, mas não carece de licença. E os praticantes da função extravasam largamente o rol dos que têm ficha cadastrada no grémio.

Na diferença de todas as diferências, os cientistas pensam. Os poetas pensam. O engenheiro pensa. Os artistas pensam. O homem comum pensa. As crianças… pensam.

Não obstante, ocorre que é própria dos filósofos uma ocupação com o pensar.

Para além, de existirem, porventura, traços característicos do modo filosófico de se embrenhar pelo pensamento. Os quais – por certo, e documentadamente -- se vêm a plasmar numa multidão de doutrinas, disparam por sendeiros metodológicos diversos, reflectem imagens distintas do mundo e da vida, aportam a balcões de perspectiva e a posicionamentos existenciais diferenciados.

[…]

Pensando, estamos junto de nós mesmos. No aconchego da nossa casinha. 

É o momento subjectivo da «vivência» do pensar.

Um território endógeno ao qual Ortega y Gasset tantas vezes aludiu, mesmo se para lhe dependurar uma «circunstancialidade» (representada) de que nos incumbiria o resgate da perdição no anonimato: «Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo a ela não me salvo eu.» («Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo.», José ORTEGA Y GASSET, Meditaciones del Quijote (1914), Lector…; ed. Julián Marías, Madrid, Ediciones Cátedra, 19843, p. 77. É, pois, na bacia destes mares interiores que as operações de busca e salvamento decorrem).

O momento subjectivo do pensar afeiçoa-nos – até na cartesiana dúvida – a uma presença com-partida da intimidade.

Todavia – mesmo no dilacerado das cisões, e no dividido das hesitações –, nós pensamos o real. Assentados, mas não sentados, na deveniência concreta do ser – que habitamos, e onde vamos sendo. Numa acidentada, mas constante, dialogia metabólica com ele. No horizonte prático de um viver que se prolonga.

Pensamos no real. Mas, acaso, o mais importante é que pensamos de dentro do real, e a partir dele.

Pensamos de dentro do real, quando o descrevemos em conto, e o medimos com a régua. Quando intentamos compreendê-lo. Quando procuramos orientação no mundo. Inclusivamente, no nosso mundo dos afectos (que não é só um quartito esconso na cave monadológica: sem janelas, e com pouco ar).

Pensamos ainda de dentro do real, quando nos enganamos. Quando distorcemos. Quando mentimos. Quando soltamos as rédeas no galope à imaginação. Quando trans-gredimos a positividade rigidificada do existente, assestando o rumo a outras andanças e a figuras transformadas do ser.

Continuamos a pensar o real, e de dentro do real, mesmo quando – num enredo de aflições (mais no angustiado sofridas, do que com correcção no olhar em clave activa enfrentadas) – pretendemos converter a cogitação num sofisticado aparelho de fuga para os subúrbios desempestados de uma «realidade» pestilenta.

O nosso pensar está efectivamente montado sobre um viver. E o pensar – no seu modo, modelação, e modulações – não é de todo estranho à qualidade, ao espessor, à densidade, do nosso viver.

[…]

Há, sem dúvida, um momento subjectivo que é imprescindível na activação do pensar. É constitutivamente intrínseco ao desempenho da própria função. Uma sua não comparência eventual determina a nulidade daquilo mesmo que pretendesse subir à cena disfarçado de pensar.

Esta necessária condição interna, todavia, não é suficiente. Porque nos deixa remetidos, e encapsulados, num reduto abstracto, isolado, ao qual falta a concreção das determinações e dos seus desenvolvimentos.

O pensar é, todo ele, um acto de entregas à relacionalidade.

Pensamos em relação com o mundo. Pensamos desde, e na respiração de, uma cultura. Pensamos e vivemos sempre em comunidade – mesmo quando dela estamos fisicamente apartados, ou quando apetecemos apartar-nos do seu convívio directo. O nosso singularismo, a nossa individualidade – aspectos constituídos que não são para votar ao menosprezo –, somente ganham efectiva estação no incontornável contorno de uma trama complexa e lábil de relacionamentos.

[…]

A crítica. Um rastilho muito falado, que tem o infectuoso costume de se arrastar mais pelas bocas sem consistência (mas com sonoro alarido), do que de propriamente acender a mecha ao detonar da meditação.

Criticar não é dizer-mal; é procurar ver bem. Tão-pouco criticar é contrapôr, de um modo abstracto e mecânico, enunciações que entre si se excluem. A fim de preparar, não raro, uma saída airosa para o elegante salão dos cepticismos.

O assunto em causa é outro. A crítica é um exame: um fazer passar pelos crivos da racionalidade, e do discernimento, tudo aquilo que imediatamente se nos apresenta – ou que nos oferecem de presente na bandeja – como uma datidade inquestionável.

Por isso, o pensar filosófico – descendo uns lanços de escada no trabalho – aponta também a uma demanda de fundamentação.

Não, como entono cadenciado de uma ladainha de «motivos» e de «motivações» justificantes. Não, com o sorrateiro propósito de erigir solenemente «A Filosofia» em pedra angular inamovível de todo o edifício da ciência universal. Mas, como porfiada linha de uma busca dos supostos que suportam e estruturam – inclusivamente, na sua dinâmica – tudo aquilo por cuja inteligibilidade importa que se pergunte.

E, para isso, há que cuidar de um estabelecimento correcto dos problemas.

A labuta do pensar não visa simplesmente as respostas que, em prémio, hão-de obter-se. Precisa de madrugar. Começa mais cedo. Pela elaboração dos questionários.

As «soluções» não caem do céu. De paraquedas. Por inspiração funda de alguma corrente de ar benfazeja. Rodopiando no espirro incandescente de uma revoada de luz, ou no piar de um passarinho. As vias resolutórias engendram-se, surgem, e transpiram, de dentro de uma problemática que lhes define um horizonte.

Confirma-se que os filósofos parecem ter predilecção pelo accionamento de uma estranha maquineta que dá pelo nome sugestivo de «complicómetro». Mas não é porque eles estejam possuídos por uma indebelável mania de ensarilhar os lotes.

O sarilho está metido no próprio enredamento das coisas. E para desenvencilhar é preciso trazê-lo à mastigação do pensamento.

Sem um ensaio de penetração inteligente na contraditoriedade complexa do real – nas suas distintas camadas, articulações, e movimentos –, permanecemos apenas pela água rala de um presumível «conhecimento», circunscrito à representação dos «factos» momentâneos (mesmo quando fidedigna). À míngua de remédio, ficamos sem remedeio encravados no lamaçal torço da imediatez existenciada.

Por isso, ao pensar filosófico igualmente incumbe empreender uma sondagem, e o desbravamento, do leque de possíveis – sobretudo, das possibilidades reais – que cada existência (internamente entretecida de negatividade) com-porta, e que ao adiante de si pro-jecta.

Não, para fazer carreira no ramo a que se dedicam as conceituadas indústrias da vidência profética. Não, para que a filosofia se reconverta num cosmopolita aeroporto espiritual de voos intercontinentais com aterragem feliz prometida nos impossíveis da «utopia» (que deseja tanto mais os «fins», quanto menos tem na devida conta os meios, e nem trabuca para os pôr de pé). Não, para desembocar na confecção magnífica de um «dever-ser» moral (que deixa intacta a materialidade do ser, satisfeito por lhe sobrepôr, em debrum, uma generosa ordem normativa de sonhos). Mas, para intentar compreender – e no limite: transformar (o que implica um empenhamento de energias práticas) – as realidades, no seu devir. As quais, na estadia do presente, não só trans-portam carregos do passado nas cafurnas, como aproam a um por vir em carência de materialização.

Esbocei por alto – olhando para baixo – alguns rasgos, que rasgam.

No seu conjunto, e por trajectórias diversas, todos estes traços permitem explicar que a filosofia – sem dúvida que nem sempre, mas já desde a sua primeva aparição na Grécia antiga como instituto cultural – tenha podido apresentar-se, umas vezes, como perigosa ameaça ao império indisputado das representações hegemónicas, e, amiúde, como um luminoso marcador de incomodidades generalizadas. Tudo por causa do trato que dispensa àquele indispensado interrogar molesto, que muita gente despede, mas de que ela não tem maneira de se despedir.

Na verdade da sua realidade, a filosofia – por vocação – é uma pro-vocação. Ao tirocínio do pensar.» José BARATA-MOURA, “Traços do pensar filosófico”, Philosophica 45 (Lisboa, 2015) pp.8-15. Vd. Conferência gravada na pasta Eventos.

 

Exercício de interpretação

a) Filosofar é o único modo de pensar?

b) Há um único modo de pensar em Filosofia?

c) Como é que o pensar filosófico lida com a subjectividade?

d) Em que sentido se deve entender a crítica em Filosofia?

e) Em que sentido se diz aqui que a Filosofia é uma “pró-vocação”?

 

 

Texto 2

 

Fernando SAVATER

 

«Mas imagina que, em vez de perguntares pelas horas, te ocorre perguntar: “O que é o tempo?” Olá, agora é que começam as dificuldades.

Porque, para começar, seja o tempo o que for, vais continuar a viver da mesma maneira: não sairás nem mais cedo nem mais tarde para ires ter com os amigos ou para apanhares o comboio. A pergunta pelo tempo nada tem a ver com o que vais fazer, mas sim com o que tu és. O tempo é algo que te acontece a ti, algo que faz parte da tua vida: queres saber o que é o tempo porque pretendes conhecer-te melhor, porque te interessa saber de que se trata tudo isto – a vida – em que acontece estares metido. Perguntar “o que é o tempo?” é algo semelhante a perguntar “como sou eu?”. Não é uma pergunta nada fácil de responder …

Segunda complicação: se quiseres saber o que é o tempo … a quem perguntas? A um relojoeiro? A um fabricante de calendários? A verdade é que não há especialistas do tempo, não há “tempólogos”. Na melhor das hipóteses, um cientista fala-te da teoria da relatividade e do espaço interplanetário; um antropólogo poderá explicar-te as diferentes formas de medir a passagem do tempo que as sociedades inventaram; e um poeta cantar-te-á em verso a nostalgia do tempo que passou e do que levou com ele … Mas tu não te conformas com nenhuma dessas visões parciais, pois o que gostarias de saber é o que é o tempo realmente, seja no espaço interplanetário, na história ou na tua biografia. Como passa o tempo … e por que passa? Não há especialistas neste tema, mas, em contrapartida, a questão poderá interessar qualquer pessoa como tu, ou seja, qualquer outro ser humano. Portanto, não precisas de te esforçar por encontrares um sábio que resolva as tuas dúvidas: o melhor é falares com os outros, com os teus semelhantes, com outros que se preocupem como tu. Talvez que, entre todos, encontrem uma resposta válida.

Assinalarei uma outra característica surpreendente relativa a esta interrogação que levantaste (por esta altura, se calhar já estás arrependido…). Ao contrário das outras perguntas, aquelas que deixam de interessar-te quando são respondidas por quem percebe do assunto, neste caso a questão do tempo intrigar-te-á mais à medida que os outros lhe tentam responder. As diferentes respostas aumentam cada vez mais a tua curiosidade pelo tema, em vez de a liquidarem: dá-te vontade de perguntar mais e mais, em vez de desistires de perguntar.

E não penses que se trata apenas da pergunta sobre o tempo; se quiseres saber o que é a liberdade, ou a morte, ou o Universo, ou a verdade, ou a natureza, ou … algumas dessas grandes coisas, acontecer-te-á o mesmo. Como verás, nem sequer são temas “esquisitos”: será por acaso uma coisa extravagante, ou insólita, a morte ou a liberdade? Mas também não são perguntas correntes, ou seja, não são práticas nem científicas: são perguntas filosóficas. Chamamos “filosofia” ao esforço para responder a essas perguntas e para continuar a perguntar depois, a partir das respostas que recolheste, ou que tu próprio encontraste. Porque uma das características de nos colocarmos no plano filosófico é não nos conformarmos facilmente com a primeira explicação que se obtém sobre o assunto, nem com a segunda, nem sequer com a terceira ou a quarta.» Fernando SAVATER, História da Filosofia. Sem medo nem pavor. Tradução de Pedro Vidal, Lisboa, Planeta, 2011, pp.15-16.

 

Exercício de interpretação

a) O que é que distingue a pergunta sobre o tempo da pergunta pelas horas?

b) Quais são as dificuldades que este texto realça para responder à pergunta sobre o tempo?

c) O tempo é um tema científico ou filosófico ou corrente ou extravagante? Responda esclarecendo se estas hipóteses se excluem mutuamente.

d) Quais são os outros temas que este texto reconhece semelhantes ao tempo? Explicite em que é que são semelhantes. Pode enunciar outros?

e) Como é que este texto valoriza a história da filosofia para o exercício da própria filosofia?

 

 

Texto 3

 

SANTO AGOSTINHO

 

«Que é, pois, o tempo? Quem o poderá explicar facilmente e com brevidade? Quem poderá apreendê-lo, mesmo com o pensamento, para proferir uma palavra acerca dele? Que realidade mais familiar e conhecida do que o tempo evocamos na nossa conversação? E quando falamos dele, sem dúvida compreendemos, e também compreendemos quando ouvimos alguém falar dele. O que é, pois, o tempo? Se ninguém mo pergunta, sei o que é; mas se quero explicá-lo a quem mo pergunta, não sei.» SANTO AGOSTINHO, Confissões XI, 14, 17. Tradução e notas de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina Pimentel, introdução de Manuel da Costa Freitas, notas de âmbito filosófico de Manuel da Costa Freitas e José Maria Rosa, Lisboa, Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira/ Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000, p.567.

 

Exercício de interpretação

a) O que é que caracteriza aqui a questão do tempo?

b) Donde a dificuldade da resposta?

 

 

Texto 4

 

SANTO ANSELMO

 

«De facto, uma vez que todos desejam fruir apenas daquelas coisas que consideram boas, fica acessível converter por vezes o olhar da mente para investigar aquilo donde são boas aquelas coisas que não deseja senão porque julga serem boas, de modo que, conduzindo a razão, progrida racionalmente na direcção daquilo que irracionalmente ignora.» SANTO ANSELMO, Monologion 1. Ed. F. S. Schmitt, Opera Omnia, Stuttgart – Bad Cannstatt, 1968, I, p.14, 12‑16; p.15, 1 (Tradução nossa).

 

Exercício de interpretação

a) Há aqui uma questão filosófica a despontar: qual?

b) O que é que não pode faltar ao método de abordagem da questão em apreço?

 

 

Texto 5

 

Henri BERGSON

 

«A verdade é que a filosofia não é uma síntese das ciências particulares e que se ela se coloca frequentemente no terreno da ciência, se ela abrange por vezes numa visão mais simples os objectos de que trata a ciência, não é intensificando a ciência, não é levando os resultados da ciência a um grau mais elevado de generalidade. Não haveria lugar para duas maneiras de conhecer, filosofia e ciência, se a experiência não se nos apresentasse sob dois aspectos diferentes, de um lado sob a forma de factos que se justapõem a factos, que mais ou menos se repetem, que mais ou menos se medem, que por fim se desdobram no sentido da multiplicidade distinta e da espacialidade, de outro, sob a forma de uma penetração recíproca que é pura duração, refractária à lei e à medida. Nos dois casos, experiência significa consciência; mas, no primeiro, a consciência desabrocha por fora, e exterioriza-se em relação a ela mesma na medida exacta em que vê coisas exteriores umas às outras; no segundo ela volta para si, reassume-se e aprofunda-se. Sondando assim a sua própria profundidade, penetra mais longe no interior da matéria, da vida, da realidade em geral? Poderíamos contestá-lo se a consciência tivesse sido acrescentada à matéria como um acidente; mas pensamos ter demonstrado que semelhante hipótese, de acordo com a perspectiva que se adoptar, é absurda ou falsa, contraditória consigo própria ou negada pelos factos. Poderíamos contestá-lo ainda, se a consciência humana, se bem que aparentada a uma consciência mais vasta ou mais elevada, tivesse sido posta de lado, e se o homem tivesse de se manter num recanto da natureza como uma criança de castigo. Mas não! a matéria e a vida que enchem o mundo estão do mesmo modo em nós; as forças que trabalham em todas as coisas, sentimo-las em nós; qualquer que seja a essência íntima do que é e do que se faz, pertencemos-lhe. Desçamos agora ao interior de nós próprios: quanto mais profundo for o ponto que conseguirmos atingir, mais forte será o impulso que nos reenviará à superfície. A intuição filosófica é este contacto, a filosofia é esse ímpeto (élan).» Henri BERGSON, A Intuição Filosófica. Tradução, introdução e notas de Maria do Céu Patrão Neves, Lisboa, Edições Colibri, 1994, pp.55-58.

 

Exercício de interpretação

a) O que é que a filosofia e a ciência têm em comum, segundo este texto?

b) Como é que a filosofia se distingue da ciência, como modo de conhecer?

c) Como se origina a filosofia?

 

 

Texto 6

 

Albert CAMUS

 

«Não há senão um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. julgar que a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São jogos; primeiro é preciso responder. E se é verdade, como pretende Nietzsche, que um filósofo, para ser estimável, deve pregar com o exemplo, percebe-se a importância desta resposta, uma vez que ela vai preceder o gesto definitivo. São estas evidências sensíveis ao coração, mas é preciso aprofundá-las para as tornar claras ao espírito.

Se eu me pergunto a que propósito julgar que tal questão é mais premente do que tal outra, respondo que é às acções que ela importa. Nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico. Galileu, que tinha uma verdade científica importante, abjurou-a com a maior facilidade, desde que ela pôs a sua vida em perigo. Num certo sentido, ele fez bem. Esta verdade não valia a pira. Qual da Terra ou do Sol gira em torno do outro, isso é profundamente indiferente. Em suma, é uma questão fútil. Em contrapartida, eu vejo que muitas pessoas morrem porque estimam que a vida não vale a pena ser vivida. Vejo outros que se fazem paradoxalmente matar por ideias ou ilusões que lhes dão uma razão para viver (aquilo que se chama uma razão para viver é, ao mesmo tempo, uma excelente razão para morrer). Julgo, portanto, que o sentido da vida é a mais premente das questões. Como responder-lhe? Sobre todos os problemas essenciais - entendo por tais, aqueles que são capazes de fazer morrer ou aqueles que redobram a paixão de viver - não há, provavelmente, senão dois métodos de pensamento: o de La Palisse e o de Dom Quixote. Só o equilíbrio entre a evidência e o lirismo nos pode permitir aceder, ao mesmo tempo, à emoção e à clareza. Num assunto simultaneamente tão humilde e tão carregado de patético, a dialéctica sábia e clássica deve, portanto, ceder o lugar, concebemos isso, a uma atitude de espírito mais modesta, que proceda, ao mesmo tempo, do bom senso e da simpatia.» Albert CAMUS, Le mythe de Sisyphe. Essai sur l’absurde. Paris, Éditions Gallimard, 1942, pp.17-18 (Trad. nossa).

 

Exercício de interpretação

a) Que questões filosóficas e científicas são consideradas neste texto?

b) Este texto admite um critério de prioridade para ordenar as questões consideradas, segundo graus de importância: que critério é esse?

c) Qual é a questão filosófica mais importante? Por que é que ela precede todas as outras?

d) Como é que a filosofia deve abordar tal questão?

 

 

Texto 7

 

Karl JASPERS

 

«3. O problema crucial é o seguinte: a filosofia aspira à verdade total, que o mundo não quer. A filosofia é, portanto, perturbadora da paz.

E a verdade o que será? A filosofia busca a verdade nas múltiplas significações do ser-verdadeiro segundo os modos do abrangente. Busca, mas não possui o significado e substância da verdade única. Para nós, a verdade não é estática nem definitiva, mas movimento incessante, que penetra no infinito.

No mundo, a verdade está em conflito perpétuo. A filosofia leva esse conflito ao extremo, porém o despe de violência. Em suas relações com tudo quanto existe, o filósofo vê a verdade revelar-se a seus olhos, graças ao intercâmbio com outros pensadores e ao processo que o torna transparente a si mesmo.

Quem se dedica à filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa o que ele faz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar, com seus concidadãos, do destino comum da humanidade.

Eis por que a filosofia não se transforma em credo. Está em contínua pugna consigo mesma.

4. A dignidade do homem reside em perceber a verdade. Só a verdade o liberta e só a liberdade o prepara, sem restrições, para a verdade.

É a verdade o significado último para o homem no mundo? É a veracidade o imperativo último? Acreditamos que sim, pois a veracidade sem reservas, que não se perde em opiniões, coincide com o amor.

Nossa força está em agarrarmos os fios de Ariadne que a verdade nos lança. Mas a verdade só é a verdade total. É preciso que a verdade múltipla seja levada a convergir para a unicidade. Jamais chegamos a possuir essa verdade integral. Eu a nego quando vou ao extremo da afirmação, quando erijo o que sei em absoluto. Eu a nego também quando tento sistematizá-la em um todo, porque a verdade total não existe para o homem e porque essa ilusão o paralisa.

Todo aquele que se dedica à filosofia quer viver para a verdade. Vá para onde for, aconteça-lhe o que acontecer, sejam quais forem os homens que ele encontre e, principalmente, diante do que ele próprio pensa, sente e faz - está sempre interrogando. As coisas, as pessoas e ele próprio devem tornar-se claros a seus olhos. Ele não se afasta de seu contacto. Ao contrário, a ele se expõe. E prefere ser desgraçado em sua busca da verdade a ser feliz na ilusão.

Faz-se preciso que o que é se ponha manifesto.

É possível certa confiança, mas não a certeza. A verdade, mesmo quando nos abate, revela - se for realmente a verdade - aquilo que nos salva. E produz-se o milagre da filosofia: se recusarmos todos os enganos, afastarmos todos os véus, expusermos à luz todas as insinceridades, se nos obstinarmos a avançar de olhos abertos, sujeitando nossas críticas a outras críticas, essa crítica terminará por não ser destruidora. Muito ao contrário, veremos, por assim dizer, revelar-se o próprio fundamento das coisas onde vemos luz, como um restaurador vai-se apercebendo de um Rembrandt por sob a pintura posterior que o escondia.

E se a luz não se revelar? Se, ao fim, o homem descobrir a máscara de Górgona e vir-se transformado em pedra? Não temos o direito de olvidar que isso é suscetível de acontecer. A filosofia se expõe a abismos diante dos quais não deve fechar os olhos, assim como não pode esperar que desapareçam por encanto.

Torna-se mais clara do que nunca a questão que, desde o início, se pôs para o homem. O “sim” para a vida é a grande e bela aventura, porque permite a realização da razão, da verdade e do amor. O “não” à existência, traduzido pelo suicídio é a realidade para homens diante de cujo segredo permanecemos calados. Põe-se fronteira que não temos o direito de esquecer.» Karl JASPERS, Introdução ao Pensamento Filosófico. Tradução de Leonidas Hesenberg e Octanny Silveira da Mota, São Paulo, Editora Cultrix, sd., pp.140-142.

 

Exercício de interpretação

a) Qual é a questão filosófica que este texto elege como principal?

b) Como é que tal questão se impõe ao filósofo?

c) Pode o filósofo responder a tal questão? Porquê?

d) Qual o sentido da distinção entre verdade e veracidade neste texto?

e) Como é que este texto combina verdade, razão e amor?

e) Que escolha é que tal questão «crucial» pressupõe «desde o início»?

 

 

Texto 8

 

José ORTEGA Y GASSET

 

«Por que volta, pois, o homem à filosofia? Por que volta a ser normal a vocação para ela? Evidentemente, volta-se a uma coisa pela mesma razão essencial que levou a ela na primeira vez. Se assim não for, o regresso carece de sinceridade, é uma falsa volta, um fingir que se volta.

Isto obriga-nos a que coloquemos a questão da razão por que ocorre ao homem em absoluto fazer filosofia. Porquê ao homem - ontem, hoje ou outro dia - lhe ocorre filosofar? Convém trazer com claridade à mente essa coisa que costumamos chamar filosofia, para poder depois responder ao «porquê» do seu exercício.

[...].

O que primeiro ocorreria dizer seria definir a filosofia como conhecimento do Universo. Mas esta definição, sem ser errónea, pode deixar-nos escapar precisamente tudo o que há de específico, o peculiar dramatismo e o tom de heroicidade intelectual em que a filosofia e só a filosofia vive. Parece, com efeito, essa definição uma oposição à que podíamos dar da física, dizendo que é conhecimento da matéria. Mas sucede que o filósofo não se coloca diante do seu objecto - o Universo - como o físico perante o seu, que é a matéria. O físico principia por definir o perfil desta e só depois começa o seu labor e tenta conhecer a sua estrutura íntima. Do mesmo modo, o matemático define o número e a extensão; isto é, todas as ciências particulares começam por demarcar um pedaço do Universo, por limitar o seu problema, que por ser limitado deixa em parte de ser problema. Em outras palavras: o físico e o matemático conhecem de antemão a extensão e os atributos essenciais do seu objecto; portanto, começam não com um problema, mas com algo que dão ou tomam como já sabido. Mas o Universo em cuja pesquisa o filósofo parte audaz como um argonauta, não se sabe o que é. Universo é o vocábulo enorme e monolítico que como uma vasta e vaga gesticulação oculta mais do que enuncia este conceito rigoroso: tudo quanto há. Isso é, para já o Universo. Isso, notem vocês bem, nada mais do que isso, porque quando pensamos o conceito «tudo quanto há», não sabemos o que seja isso que há; aquilo em que unicamente pensamos é um conceito negativo, a saber: a negação do que somente é parte, bocado, fragmento. O filósofo, pois, de modo diferente de qualquer outro cientista, embarca para o desconhecido como tal. O mais ou menos conhecido é partícula, porção, esquírola de Universo. O filósofo situa-se perante o seu objecto numa atitude diferente de qualquer outro conhecedor; o filósofo ignora qual é o seu objecto e dele sabe somente: primeiro, que não é nenhum dos restantes objectos; segundo, que é um objecto integral, que é o autêntico todo, o que não deixa nada de fora e, por isso, o único que se basta. Mas precisamente nenhum dos objectos conhecidos ou suspeitados possui esta condição. Portanto, o Universo é o que radicalmente não sabemos, o que absolutamente ignoramos no seu conteúdo positivo.» José ORTEGA Y GASSET, O que é a Filosofia? Ensaio. Tradução de José Bento, Lisboa, Edições Cotovia, 1994, pp.46-48.

 

Exercício de interpretação

a) O que é que distingue o filósofo do físico e do matemático?

b) Qual o significado do «Universo» como objecto da filosofia?

 

 

Texto 9

 

Bertrand RUSSELL

 

«O valor da filosofia, de facto, é para ser procurado em grande medida na sua muita incerteza. O homem que não tem traço de filosofia anda pela vida aprisionado pelos preconceitos derivados do senso comum, desde as crenças habituais da sua idade e nação, e desde as convicções que cresceram na sua mente sem a cooperação ou o consentimento da sua razão deliberada. Para tal homem, o mundo tende a ser definido, finito, óbvio; objectos comuns não levantam questões, e possibilidades não familiares são rejeitadas com desprezo. Pelo contrário, logo que começamos a filosofar, encontramos, como vimos nos nossos capítulos de abertura, que até as coisas mais quotidianas conduzem a problemas aos quais só respostas muito incompletas podem ser dadas. A filosofia, embora incapaz de nos dizer com certeza qual é a verdadeira resposta para as dúvidas que levanta, é capaz de sugerir muitas possibilidades que alargam os nossos pensamentos e os libertam da tirania do costume. Assim, ao diminuir o nosso sentimento de certeza sobre aquilo que as coisas são, ela aumenta imensamente o nosso conhecimento sobre aquilo que podem ser; ela remove o dogmatismo de certo modo arrogante daqueles que nunca viajaram para a região da dúvida libertadora, e mantém vivo o nosso sentido de admiração ao mostrar coisas familiares sob um aspecto não familiar.» Bertrand RUSSELL, The Problems of Philosophy (1ª ed.,1912). 9ª impressão da ed. de 1967, com apêndice, Oxford/ Nova Iorque, Oxford University Press, 1980, p.91 (Tradução nossa).

 

Exercício de interpretação

a) O que é que distingue o filósofo do não filósofo?

b) Qual o papel da dúvida em filosofia?

c) Qual o valor da filosofia?

 

 

Texto 10

 

Bertrand RUSSELL

 

«O conhecimento é uma forma de união do Eu e do não-Eu (Self and not-Self); como toda a união, é prejudicada pelo domínio, e, portanto, por qualquer tentativa de forçar o universo a entrar em conformidade com aquilo que nós encontramos em nós próprios. Há uma ampla tendência filosófica no sentido da visão que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas, que a verdade é feita pelo homem, que o espaço e o tempo e o mundo dos universais são propriedades da mente, e que, se houver alguma coisa não criada pela mente, isso é incognoscível e sem explicação para nós. Esta visão, se as nossas discussões prévias forem correctas, não é verdadeira; mas, além de não ser verdadeira, ela tem o efeito de roubar à contemplação filosófica tudo aquilo que lhe dá valor, pois agrilhoa a contemplação ao Eu. Aquilo a que chama conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas uma série de preconceitos, hábitos, e desejos, criando um véu impenetrável entre nós e o mundo exterior. O homem que se compraz em tal teoria do conhecimento é como aquele que nunca larga o meio doméstico por medo de que a sua palavra não fosse a lei.

Pelo contrário, a verdadeira contemplação filosófica encontra a sua satisfação em todo o alargamento do não-Eu, em tudo aquilo que amplia os objectos contemplados, e, desse modo, o sujeito que contempla. Na contemplação, tudo aquilo que é pessoal ou privado, tudo aquilo que depende do hábito, do próprio interesse, ou do desejo, distorce o objecto, e, portanto, prejudica a união que o intelecto procura. Criando assim uma barreira entre o sujeito e o objecto, essas coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O intelecto livre vê como Deus poderia ver, sem um aqui e um agora, sem esperanças e medos, sem os obstáculos das crenças costumeiras e dos preconceitos tradicionais, calmamente, desapaixonadamente, no único e exclusivo desejo de conhecimento - conhecimento como impessoal, como puramente contemplativo, tanto quanto é possível ao homem alcançar. Por conseguinte, também o intelecto livre valorizará mais o conhecimento abstracto e universal, no qual não entram os acidentes da história privada, do que o conhecimento trazido pelos sentidos, e dependente, como tem de ser tal conhecimento, de um ponto de vista exclusivo e pessoal e de um corpo cujos órgãos sensoriais tanto distorcem como revelam.

A mente que se tornou acostumada à liberdade e à imparcialidade da contemplação filosófica há-de preservar algo da mesma liberdade e imparcialidade no mundo da acção e da emoção. Olhará para os seus propósitos e desejos como partes de um todo, com a ausência da insistência que resulta de vê-los como fragmentos infinitesimais num mundo do qual todo o resto não é afectado pelos actos humanos de qualquer um. A imparcialidade que, na contemplação, é o não permitido desejo de verdade, é a mesma qualidade de espírito (quality of mind) que, na acção, é justiça, e na emoção é aquele amor universal que pode ser dado a todos, e não apenas àqueles que são julgados úteis ou dignos de admiração. Assim a contemplação amplia não só os objectos dos nossos pensamentos mas também os objectos das nossas acções e afecções: torna-nos cidadãos do universo, não apenas de uma cidade murada em guerra com todo o resto. Nesta cidadania do universo consiste a verdadeira liberdade do homem, e a sua libertação face à servidão de estreitas esperanças e medos.

Assim, para resumir a nossa discussão sobre o valor da filosofia: a Filosofia é para ser estudada, não por causa de quaisquer respostas definidas às suas questões, uma vez que nenhumas respostas definidas podem, em regra, ser conhecidas como sendo verdadeiras, mas antes por causa das próprias questões; porque estas questões alargam a nossa concepção do que é possível, enriquecem a nossa imaginação intelectual, e diminuem a segurança dogmática que fecha a mente à especulação; mas, sobretudo, porque, através da grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente também se torna grande, e torna-se capaz daquela união com o universo que constitui o seu maior bem.» Bertrand RUSSELL, The Problems of Philosophy (1ª ed.,1912). 9ª impressão da ed. de 1967, com apêndice, Oxford/ Nova Iorque, Oxford University Press, 1980, pp.92-94 (Tradução nossa).

 

Exercício de interpretação

a) O Homem é a medida de todas as coisas em Filosofia? A Filosofia é antropocêntrica? Justifique a resposta.

b) Qual o papel das questões em filosofia?

c) «O intelecto livre vê como Deus poderia ver»: em que sentido?

d) A filosofia visa a contemplação ou a acção? Justifique a resposta.

e) Quais são as propriedades da contemplação filosófica? Caracterize cada uma delas.

f) A filosofia é um bem? Justifique a resposta.

g) Qual é o maior bem da filosofia?

 

 

Texto 11

 

Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI

 

«O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. O amigo seria o amigo de suas próprias criações? Ou então é o ato do conceito que remete à potência do amigo, na unidade do criador e de seu duplo? Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele que o tem em potência, ou que tem sua potência e sua competência. Não se pode objetar que a criação se diz antes do sensível e das artes, já que a arte faz existir entidades espirituais, e já que os conceitos filosóficos são também sensibilia. Para falar a verdade, as ciências, as artes, as filosofias são igualmente criadoras, mesmo se compete apenas à filosofia criar conceitos no sentido estrito. Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: "os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los. Até o presente momento, tudo somado, cada um tinha confiança em seus conceitos, como num dote miraculoso vindo de algum mundo igualmente miraculoso", mas é necessário substituir a confiança pela desconfiança, e é dos conceitos que o filósofo deve desconfiar mais, desde que ele mesmo não os criou (Platão sabia isso bem, apesar de ter ensinado o contrário...)(6. Nietzsche, Posthumes 1884-1885, Oeuvres philosophiques, XI, Gallimard, pp. 215-216 (sobre "a arte da desconfiança"). Platão dizia que é necessário contemplar as Idéias, mas tinha sido necessário, antes, que ele criasse o conceito de Idéia. Que valeria um filósofo do qual se pudesse dizer: ele não criou um conceito, ele não criou seus conceitos?

Vemos ao menos o que a filosofia não é: ela não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação, mesmo se ela pôde acreditar ser ora uma, ora outra coisa, em razão da capacidade que toda disciplina tem de engendrar suas próprias ilusões, e de se esconder atrás de uma névoa que ela emite especialmente. Ela não é contemplação, pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos. Ela não é reflexão, porque ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja: acredita-se dar muito à filosofia fazendo dela a arte da reflexão, mas retira-se tudo dela, pois os matemáticos como tais não esperaram jamais os filósofos para refletir sobre a matemática, nem os artistas sobre a pintura ou a música; dizer que eles se tornam então filósofos é uma brincadeira de mau gosto, já que sua reflexão pertence a sua criação respectiva. E a filosofia não encontra nenhum refúgio último na comunicação, que não trabalha em potência a não ser de opiniões, para criar o "consenso" e não o conceito. A idéia de uma conversação democrática ocidental entre amigos não produziu nunca o menor conceito; ela vem talvez dos gregos, mas estes dela desconfiavam de tal maneira, e a faziam sofrer um tratamento tão rude, que o conceito era antes como o pássaro-solilóquio-irônico que sobrevoava o campo de batalha das opiniões rivais aniquiladas (os convidados bêbados do banquete). A filosofia não contempla, não reflete, não comunica, se bem que ela tenha de criar conceitos para estas ações ou paixões. A contemplação, a reflexão, a comunicação não são disciplinas, mas máquinas de constituir Universais em todas as disciplinas. Os Universais de contemplação, e em seguida de reflexão, são como duas ilusões que a filosofia já percorreu em seu sonho de dominar as outras disciplinas (idealismo objetivo e idealismo subjetivo), e a filosofia não se engrandece mais apresentando-se como uma nova Atenas e se desviando sobre Universais da comunicação que forneceriam as regras de um domínio imaginário dos mercados e da mídia (idealismo inter-subjetivo). Toda criação é singular, e o conceito como criação propriamente filosófica é sempre uma singularidade. O primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados.» Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI, O que é a Filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz, S. Paulo, Editora !34, 1992, pp.13-15.

 

Exercício de interpretação

a) O que é que a filosofia não é?

b) O que é que a filosofia é?

c) Como se distingue o conceito do universal?

d) Que conexão aqui se sugere entre a filosofia e a arte?

 

 

Texto 12

 

José ORTEGA Y GASSET

 

«Por que não nos contentamos com viver e evitar filosofar? Se não é provável a obtenção daquilo que nela tanto se deseja, a filosofia não serve de nada, não precisamos dela. Perfeitamente; mas, além do mais, é um facto que há homens para quem o supérfluo é o necessário. E recordávamos a divina oposição entre Marta utilíssima e Maria supérflua. A verdade é - e a isto aludem por último as palavras de Cristo - que não existe tal definitiva dualidade e que a própria vida, inclusive a vida orgânica ou biológica, é, ao fim e ao cabo, incompreensível como utilidade, somente se explica como um imenso fenómeno desportivo.

Assim é esse facto, ao fim e ao cabo vital, que é filosofar. É necessário? Não é necessário? Se por necessário se entende «ser útil» para outra coisa, a filosofia não é, pelo menos primariamente, necessária. Mas a necessidade do útil é apenas relativa, relativa ao seu fim. A verdadeira necessidade é a que o ser sente de ser o que é - a ave de voar, o peixe de vogar e o intelecto de filosofar. Esta necessidade de exercer a função ou acto que somos é a mais elevada, a mais essencial.» José ORTEGA Y GASSET, O que é a Filosofia? Ensaio. Tradução de José Bento, Lisboa, Edições Cotovia, 1994, pp.69-70.

 

Exercício de interpretação

a) Que afinidade estabelece este texto, entre o supérfluo, o desportivo e o necessário?

b) Qual a necessidade de filosofar?

 

  

1. A filosofia através das suas grandes questões

 

Texto 13

 

Immanuel KANT

 

«Todo o interesse da minha razão (tanto especulativa como prática) concentra-se nas seguintes três interrogações:

1. Que posso saber?

2. Que devo fazer?

3. Que me é permitido esperar?

A primeira questão é simplesmente especulativa. Esgotámos (e disso me ufano) todas as respostas possíveis e encontrámos enfim aquela com a qual a razão é obrigada a contentar-se e, mesmo quando não se ocupa do interesse prático [a liberdade transcendental], também tem motivo para estar satisfeita; mas ficámos tão distanciados dos dois grandes fins para onde está orientado todo o esforço da razão pura [a imortalidade da alma e a existência de Deus], como se por comodidade tivéssemos renunciado desde o princípio a este trabalho. Se portanto se trata do saber, é pelo menos seguro e está bem estabelecido que, em relação a estas duas perguntas [Há um Deus? Há uma vida futura], nunca poderemos saber algo.

A segunda interrogação é simplesmente prática. É certo que, como tal, pode pertencer à razão pura, mas não é transcendental, é moral, e, por conseguinte, não pode em si mesma fazer parte da nossa crítica.

A terceira interrogação: Se faço o que devo fazer, que me é permitido esperar? é ao mesmo tempo prática e teórica, de tal modo que a ordem prática apenas serve de fio condutor para a resposta à questão teórica e, quando esta se eleva, para a resposta à questão especulativa. Com efeito, toda a esperança tende para a felicidade e está para a ordem prática e para a lei moral, precisamente da mesma forma que o saber e a lei natural estão para o conhecimento teórico das coisas. A esperança leva, por fim, à conclusão que alguma coisa é (que determina o fim último possível), porque alguma coisa deve acontecer; o saber, à conclusão que alguma coisa é (que age como causa suprema) porque alguma coisa acontece.

A felicidade é a satisfação de todas as nossas inclinações (tanto extensive, quanto à sua multiplicidade, como intensive, quanto ao grau e também protensive, quanto à duração).» Immanuel KANT, Crítica da Razão Pura (KrV) B 832 – B 834. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, (2ª ed.) 1989, pp.[639-640].

 

 

Texto 14

 

Immanuel KANT

 

              «O campo da Filosofia nesta acepção universal [«a Filosofia no seu significado último é a ciência da relação de todo o conhecimento e uso da razão com o fim da razão humana» p.73] abre-se às seguintes perguntas:

              1. Que posso saber?

              2. Que devo fazer?

              3. Que me é permitido esperar?

              4. Que é o homem?

               

              À primeira pergunta responde a Metafísica, à segunda a Moral, à terceira a Religião e à quarta a Antropologia.

              No fundo, porém, poder-se-ia contar tudo isto como Antropologia, porque as três primeiras perguntas referem-se à última.

              O filósofo tem portanto de poder definir

              1. as fontes do saber humano,

              2. o âmbito do emprego possível e útil de todo o saber e, finalmente,

              3. os limites da razão.

 

              O último [objectivo] é o mais necessário, mas também o mais difícil, e [aquele] com o qual, no entanto, o filodoxo não se preocupa.

              Competem ao filósofo principalmente duas coisas:

              1. cultura do talento e da habilidade, para os usar em relação aos vários fins. 2. destreza no emprego de todos os meios para quaisquer fins. Ambas têm de ser conjugadas; pois sem conhecimentos ninguém se pode tornar filósofo, mas também nunca só os conhecimentos fazem o filósofo, a não ser que sobrevenha uma conveniente junção de todos os conhecimentos e habilidades na unidade e uma visão da sua conveniência com os fins supremos da razão humana.» Immanuel KANT, “Conceito da filosofia em geral”, in José BARATA-MOURA, Kant e o conceito de filosofia. Com um texto em apresentação bilingue extraído da «Lógica». Lisboa, Sampedro, 1972, pp.75-79.

 

 

Texto 15

 

José BARATA-MOURA

 

«Os fins últimos da razão levam ao estabelecimento de um certo número de interrogações que definem a formulação problemática da filosofia.

“Todo o interesse da minha razão (tanto especulativo como prático) está contido nestas três perguntas:

1. Que posso saber?

2. Que devo fazer?

3. Que me é permitido esperar?

Na Lógica estas ideias encontram-se muito elucidativamente completadas por uma outra que as precisa e lhes determina o âmbito correcto:

“4. Que é o homem?

À primeira pergunta responde a Metafísica, à segunda a Moral, à terceira a Religião e à quarta a Antropologia.

No fundo, porém, poder-se-ia contar tudo isto como Antropologia, porque as três primeiras perguntas referem-se à última.”

Nestas quantas frases, Kant dá-nos de uma forma esquemática e clara, a chave que permite penetrar na filosofia, de uma perspectiva não apenas “arqueológica” de mero inventariar de um saber passado, mas temático ou pensante.

Qual o traço de união que permite ligar os vários ramos da investigação filosófica? Na sua radicalidade, o interesse pelo homem.

É, na verdade, a preocupação antropológica que funda a aquisição de novos saberes na dupla medida em que são do homem. São, por um lado, saberes do homem, no sentido em que dizem, no fundo, algo acerca do homem, falam do homem e do seu mundo, daquele horizonte em diálogo com o qual ele vive e que no início da Dissertação de 1770 Kant definia como o termo supremo da síntese, “o todo que não é parte”. São, por outro lado, saberes do homem, na medida em que no seu próprio originar-se incluem o homem. Tanto no campo do objectivado, como no plano ético, o homem está presente a título constitutivo, quer como “in-formador categorial” fautor de fenomenalidade e, portanto, de conteúdos positivos para o conhecimento, quer como “agente” ou participante de uma autolegislação que é índice de autonomia estatuinte e de liberdade.

O homem encontra-se indissociavelmente ligado ao destino da filosofia como assunto e como sujeito.» José BARATA-MOURA, Kant e o conceito de filosofia. Com um texto em apresentação bilingue extraído da «Lógica». Lisboa, Sampedro, 1972, pp.138-140.

 

 

Texto 16

 

Manuel J. do CARMO FERREIRA

 

«Kant traça com muita nitidez e de forma constante em todo o período posterior à revolução crítica o horizonte do questionar em que se move a fundamentação da metafísica, ao apontar-lhe o seu tema único, ramificado em três interrogações que o especificam:

“1. Que posso eu saber?

  2. Que devo eu fazer?

  3. Que me é permitido esperar?

  4. Que é o homem?”

E reconduz todas estas questões nucleares da Filosofia à última pergunta, comentando:

“Poder-se-ia chamar a tudo Antropologia, porque as primeiras três perguntas referem-se à última”

              Que é o homem? – esta é a questão de Kant, não meramente recapitulativa das anteriores, mas autenticamente fundante, ao indicar a dimensão originária da problemática desenrolada na Crítica, ao captar a especificidade da reflexão nela levada a cabo. […].

              Que é o homem? – não exprime unicamente o conteúdo determinado de uma interrogação; antes designa a génese e a própria forma de toda a interrogatividade. As três questões que em si condensa revelam-se apenas como diferentes modulações da mesma pergunta pelo possível. O intellectus, a voluntas e a spes enquanto funções fundamentais do modo de ser homem descrevem o horizonte de possibilidade do sujeito, as coordenadas do seu devir o que é.

              Conhecer, Querer e Esperar – três interrogações diferentes acerca do mesmo poder ser do homem, do ser sujeito em exercício, da protagonização do conhecimento, da acção e do futuro. A tripla pergunta pelo sujeito da Ciência e da Metafísica, da Liberdade, da Cultura e da História, resume-se finalmente nessa outra pelo autor da pergunta.

              Que é o homem? – como inquérito acerca das “possibilidades do homem” compendia todo o campo da reflexão transcendental e traduz do modo mais autêntico e mais integral a atitude filosófica de Kant: em face do dado interrogar-se pela ratio essendi e pela ratio cognoscendi, pelo fundamento do possível.» Manuel J. do CARMO FERREIRA, “O Socratismo de Kant”, in José BARATA-MOURA (Dir.), KANT. Comunicações apresentadas ao Colóquio “Kant” organizado pelo Departamento de Filosofia em 25/ 11/ 1981. Lisboa, 1982, pp.35-37.

 

Exercício de interpretação

Tendo em conta os 4 textos citados, dois de I. Kant, um de J. Barata-Moura e um de M. J. do Carmo Ferreira:

a) Diga o que é comum aos 4 textos.

b) Descubra as diferenças entre os 2 textos de Kant.

c) Descubra as diferenças os textos de Kant e os textos de interpretação.

d) Descubra as diferenças entre os 2 textos de interpretação.

 

 

Texto 17

 

José ORTEGA Y GASSET

 

«Temos que ver as variações do pensar não como uma mudança na verdade de ontem, que a converte num erro para hoje, mas como uma mudança de orientação no homem que o leva a ver diante de si outras verdades diferentes das de ontem. Não, pois, as verdades, mas o homem é o que muda, e porque muda vai percorrendo a série daquelas, vai seleccionando desse orbe do transmundo a que antes aludimos [como o mundo das ideias] as que lhe são afins e tornando-se cego para todas as restantes. Notem que é este o a priori fundamental da história. Não é esta a história do homem? E que ente é esse chamado homem, cujas variações no tempo a história aspira investigar? O homem não é fácil de definir; a margem das suas diferenças é enorme; quanto maior for e menos estreita e menos estreita a noção do homem com que o historiador iniciar o seu trabalho, mais profunda e exacta será a sua obra. Homem é Kant, e homem é o pigmeu da Nova Guiné ou o australiano neanderthaloide. Contudo, um ingrediente mínimo de algo comum terá que existir entre os pontos extremos da variação humana, um limite forçoso terá que ter a margem que concedemos à humanidade para que o seja. Os antigos e os medievais tinham a sua definição mínima do homem, com rigor e para nossa vergonha não superada: é o animal racional. Coincidimos com ela: a pena é que para nós se fez não pouco problemático saber com clareza o que é ser animal e o que é ser racional. Por isso, preferimos dizer, para os efeitos da história, que o homem é todo o ser vivente que pensa com sentido e que por isso nós podemos entendê-lo. O suposto mínimo da história é que o sujeito de quem fala possa ser entendido. Pois bem: não se pode entender senão o que possui alguma dimensão de verdade. Um erro absoluto não no-lo parceria porque nem sequer o entenderíamos. O suposto profundo da história é, pois, todo o contrário de um radical relativismo. Quando vai estudar o homem primitivo supõe que a sua cultura tinha sentido e verdade e, se a tinha, continua a tê-la. Qual, se à primeira vista nos parece tão absurdo tudo o que aquelas criaturas fazem e pensam? A história é precisamente a segunda vista que consegue encontrar a razão da aparente sem-razão.» José ORTEGA Y GASSET, O que é a Filosofia? Ensaio. Tradução de José Bento, Lisboa, Edições Cotovia, 1994, pp.19-20.

 

Exercício de interpretação

a) Qual a importância do homem para a filosofia?

b) Qual a disciplina que melhor se aproxima do conhecimento do homem? Porquê?

c) Qual é o «suposto mínimo» da história?

 

 

 

2. Três questões de questões

 

2.1. Que posso saber? Questões sobre o conhecimento

 

Texto 18

 

PLATÃO

 

«- Supõe então uma linha cortada em duas partes desiguais; corta novamente cada um dos segmentos segundo a mesma proporção, o da espécie visível e o da inteligível; e obterás, no mundo visível, segundo a sua claridade ou obscuridade relativa, uma secção, a das imagens. Chamo imagens, em primeiro lugar, às sombras; seguidamente, aos reflexos nas águas, e àqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes, e a tudo o mais que for do mesmo género, se estás a entender-me.

- Entendo, sim.

- Supõe agora a outra secção, da qual esta era imagem, a que nos abrange a nós, seres vivos, e a todas as plantas e toda a espécie de artefactos.

- Suponho.

- Acaso consentirias em aceitar que o visível se divide no que é verdadeiro e no que não o é, e que, tal como a opinião está para o saber, assim está a imagem para o modelo?

- Aceito perfeitamente.

- Examina agora de que maneira se deve cortar a secção do inteligível.

- Como?

- Na parte anterior, a alma, servindo-se, como se fossem imagens, dos objectos que então eram modelos, é forçada a investigar a partir de hipóteses, sem poder caminhar para o princípio, mas para a conclusão; ao passo que, na outra parte, a que conduz ao princípio absoluto, parte da hipótese, e, dispensando as imagens que havia no outro, faz caminho só com o auxílio das ideias.

- Não percebi bem o que estiveste a dizer.

- Vamos lá outra vez - disse eu - que compreenderás melhor o que afirmei anteriormente. Suponho que sabes que aqueles que se ocupam da geometria, da aritmética e ciências desse género, admitem o par e o ímpar, as figuras, três espécies de ângulos, e outras doutrinas irmãs destas, segundo o campo de cada um. Estas coisas dão-nas por sabidas, e, quando as usam como hipóteses, não acham que ainda seja necessário prestar contas disto a si mesmos nem aos outros, uma vez que são evidentes para todos. E, partindo daí e analisando todas as fases, e tirando as consequências, atingem o ponto a cuja investigação se tinham abalançado.

- Isso, sei-o perfeitamente.

- Logo, sabes também que se servem de figuras visíveis e estabelecem acerca delas os seus raciocínios, sem contudo pensarem neles, mas naquilo com que se parecem; fazem os seus raciocínios, não por causa do quadrado em si ou da diagonal em si, mas daquela cuja imagem traçaram, e do mesmo modo quanto às restantes figuras. Aquilo que eles modelam ou desenham, de que existem as sombras e os reflexos na água, servem-se disso como se fossem imagens, procurando ver o que não pode avistar-se, senão pelo pensamento.

- Falas verdade.

- Portanto, era isto o que eu queria dizer com a classe do inteligível, que a alma é obrigada a servir-se de hipóteses ao procurar investigá-la, sem ir ao princípio, pois não pode elevar-se acima das hipóteses, mas utilizando como imagens os próprios originais dos quais eram feitas as imagens pelos objectos da secção inferior, pois esses também, em comparação com as sombras, eram considerados e apreciados como mais claros.

- Compreendo que te referes ao que se passa na geometria e nas ciências afins dessa.

- Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele que o raciocínio atinge pelo poder da dialéctica, fazendo das hipóteses não princípios, mas hipóteses de facto, uma espécie de degraus e de pontos de apoio, para ir até àquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo, atingido o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado sensível, mas passando das ideias umas às outras, e terminando em ideias.

- Compreendo, mas não o bastante - pois me parece que é uma tarefa cerrada, essa de que falas - que queres determinar que é mais claro o conhecimento do ser e do inteligível adquirido pela ciência da dialéctica do que pelas chamadas ciências, cujos princípios são hipóteses; os que as estudam são forçados a fazê-lo, pelo pensamento, e não pelos sentidos; no entanto, pelo facto de as examinarem sem subir até ao princípio, mas a partir de hipóteses, parece-te que não têm a inteligência desses factos, embora eles sejam inteligíveis com um primeiro princípio. Parece-me que chamas entendimento e não inteligência, o modo de pensar dos geómetras e de outros cientistas, como se o entendimento fosse algo de intermédio entre a opinião e a inteligência.

- Apreendeste perfeitamente a questão - observei eu -. Pega agora nas quatro operações da alma e aplica-as aos quatro segmentos: no mais elevado, a inteligência, no segundo o entendimento; ao terceiro entrega a fé, e ao último a suposição, e coloca-os por ordem, atribuindo-lhes o mesmo grau de clareza que os seus respectivos objectos têm de verdade.

- Compreendo - disse ele -; concordo, e vou ordená-los como dizes.» PLATÃO, República VI, 509 d - 511 e. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 1976², pp.313-316.

 

Exercício de interpretação

a) Em que consistem a espécie do visível, a espécie do inteligível?

b) Qual o papel da imagem na relação entre os diversos segmentos da linha?

c) Qual é a importância das ciências matemáticas neste texto?

d) O que é a dialéctica, segundo este texto?

e) Realize o exercício que Sócrates propõe a Gláucon: aplicar ordenadamente as 4 operações da alma aos segmentos da linha. Que concepção daí resulta, a respeito do conhecimento e do cognoscível?

 

 

Texto 19

 

ARISTÓTELES

 

«Todos los hombres desean por naturaleza saber. Así lo indica el amor a los sentidos; pues, al margen de su utilidad, son amados a causa de sí mismos, y el que más de todos, el de la vista. En efecto, no sólo para obrar, sino también cuando no pensamos hacer nada, preferimos la vista, por decirlo así, a todos los outros. Y la causa es que, de los sentidos, éste es el que nos hace conocer más, y nos muestra muchas diferencias.

Por naturaleza, los animales nacen dotados de sensación; pero ésta no engendra en algunos la memoria, mientras que en otros sí. Y por eso éstos son más prudentes y más aptos para aprender que los que no pueden recordar; son prudentes sin aprender los incapaces de oír los sonidos (como la abeja y otros animales semejantes, si los hay); aprenden, en cambio, los que, además de memoria, tienen este sentido.

Los demás animales viven con imágenes y recuerdos, y participan poco de la experiencia. Pero el género humano dispone del arte y del razonamiento. Y del recuerdo nace para los hombres la experiencia, pues muchos recuerdos de la misma cosa llegan a constituir una experiencia. Y la experiencia parece, en cierto modo, semejante a la ciencia y al arte, pero la ciencia y el arte llegam a los hombres a través de la experiencia. Pues la experiencia hizo el arte, como dice Polo [Polo de Agrigento, discípulo de Gorgias. Vd. Platón, Gorgias 448c], y la inexperiencia, el azar. Nace el arte cuando de muchas observaciones experimentales surge una noción universal sobre los casos semejantes. Pues tener la noción de que a Calias, afectado por tal enfermedad, le fue bien tal remedio, y lo mismo a Sócrates y a otros muchos considerados individualmente, es proprio de la experiencia; pero saber que fue provechoso a todos los individuos de tal constitución, agrupados en una misma clase y afectados por tal enfermedad, a los flemáticos, a los biliosos o a los calenturientos, corresponde al arte.

Pues bien, para la vida práctica, la experiencia no parece ser en nada inferior al arte, sino que incluso tienen más éxito los expertos que los que, sin experiencia, poseen el conocimiento teórico. Y esto se debe a que la experiencia es el conocimiento de las cosas singulares, y el arte, de las universales; y todas las acciones y generaciones se refieren a lo singular. No es al hombre, efectivamente, a quien sana el médico, a no ser accidentalmente, sino a Calias o a Sócrates, o a otro de los así llamados, que, además, es hombre. Por consiguiente, si alguien tiene, sin la experiencia, el conocimiento teórico, y sabe lo universal pero ignora su contenido singular, errará muchas veces en la curación, pues es lo singular lo que puede ser curado.

Creemos, sin embargo, que el saber y el entender pertenecen más al arte que a la experiencia, y consideramos más sabios a los conocedores del arte que a los expertos, pensando que la sabiduría corresponde en todos al saber. Y esto, porque unos saben la causa, y los otros no. Pues los expertos saben el qué, pero no el porqué. Aquéllos, en cambio, conocen el porqué y la causa. [...].

Además, de las sensaciones, no consideramos que ninguna sea sabiduría, aunque éstas son las cogniciones más autorizadas de los objectos singulares; pero no dicen el porqué de nada; por ejemplo, por qué es caliente el fuego, sino tan sólo que es caliente.

Es, pues, natural que quien en los primeros tiempos inventó un arte cualquiera, separado de las sensaciones comunes, fuese admirado por los hombres, no sólo por la utilidad de alguno de los inventos, sino como sabio y diferente de los otros, y que, al inventarse muchas artes, orientadas unas a las necesidades de la vida y otras a lo que la adorna, siempre fuesen considerados más sabios los inventores de éstas que los de aquéllas, porque sus ciencias no buscaban la utilidad. De aquí que, constituidas ya todas estas artes, fueran descubiertas las ciencias que no se ordenan al placer ni a lo necessario; y lo fueron primero donde primero tuvieron vagar los hombres. Por eso las artes matemáticas nacieron en Egipto, pues allí disfrutaba de ocio la casta sacerdotal.

Hemos dicho en la Ética [Ét. Nicom. VI, 1139b14 - 1140b8] cuál es la diferencia entre el arte, la ciencia y los demás conocimientos del mismo género. Lo que ahora queremos decir es esto: que la llamada Sabiduría versa, en opinión de todos, sobre las primeras causas y sobre los principios.» Metafísica de Aristóteles I, 980 a 20 - 981 a 30, 981 b 10-29. Tradução de Valentín García Yebra, 2ª ed. rev., 2ª reimp., Madrid, Editorial Gredos, 1990, pp.2-10.

 

Exercício de interpretação

a) Sobre os sentidos: por que razão gostamos dos sentidos? E gostamos mais da vista do que dos outros? Porquê?

b) Sobre a memória: o que é que a memória acrescenta aos sentidos?

c) Sobre a experiência e a arte (=saber técnico): o que é que distingue uma da outra? Deve-se preferir uma à outra? Em que sentido?

d) Sobre as artes, as ciências e a sabedoria: como se distinguem entre si? Há hierarquia de valor entre elas? Qual? Como exercício de comparação: qual é a ordem dos saberes no nosso tempo?

 

 

Texto 20

 

SANTO AGOSTINHO

 

«Efectivamente, somos e sabemos que somos e amamos esse ser e esse conhecer. E nestas três coisas que acabo de referir nenhuma falsidade parecida com a verdade nos perturba. De facto, não as atingimos, como às realidades exteriores, por qualquer sentido corporal, como as cores pela vista, os sons pelo ouvido, os perfumes pelo olfacto, os sabores pelo gosto, o duro e o mole pelo tacto. Destas coisas sensíveis temos também imagens que muito se lhes assemelham, mas são corporais: consideramo‑las no pensamento, conservamo‑las na memória e somos por elas incitados a desejarmos as próprias coisas; mas sem qualquer imagem enganosa da fantasia ou da imaginação, é coisa absolutamente certa que sou, que conheço e que amo. Nestas verdades nenhum receio tenho dos argumentos dos académicos que dizem: que será se te enganares? Pois se me enganar, existo. Realmente, quem não existe de modo nenhum se pode enganar. Por isso, se me engano é porque existo. Porque, portanto, existo se me engano, como poderei enganar‑me sobre se existo, quando é certo que existo quando me engano? Por conseguinte, como seria eu quem se enganaria, mesmo que me engane não há dúvida de que não me engano nisto: que conheço que existo. Mas a consequência é que não me engano mesmo nisto: que conheço que me conheço. De facto, assim como conheço que existo, assim também conheço isso mesmo: que me conheço.» SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus XI, 26. Tradução de J. Dias Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, vol. II, pp.[1051]-[1052].

 

Exercício de interpretação

a) Sobre os sentidos: o que é que não percebemos pelos sentidos, segundo este texto?

b) Qual é a certeza mais indubitável do conhecimento humano? É uma certeza simples ou complexa?

c) Quem eram os académicos, a que se refere o texto?

d) Que relação tem este texto com a corrente filosófica conhecida como cepticismo?

 

 

Texto 21

 

John LOCKE

 

«1. A palavra razão tem diferentes significados na língua inglesa. Às vezes, aplica-se a princípios verdadeiros e claros; outras vezes, a deduções claras e justas desses princípios; e outras, aplica-se à causa, e particularmente à causa final. Mas considerá-la-ei aqui com um significado diferente de todos estes, e esse significa a faculdade do homem pela qual se supõe que ele se distingue dos animais e os ultrapassa em muito.

2. Se o conhecimento geral, como se mostrou, consiste numa percepção de acordo ou desacordo das nossas próprias ideias, e o conhecimento da existência de todas as coisas fora de nós (com a única excepção de Deus, cuja existência todo o homem pode certamente conhecer e demonstrar a si próprio a partir da sua própria existência) unicamente se obtém pelos sentidos - então, que lugar fica para o exercício de qualquer outra faculdade que não seja a percepção exterior e a percepção interior? Que necessidade há de razão? Muita: tanto para o desenvolvimento do nosso conhecimento como para regular o nosso assentimento, porque tem que ver tanto com o conhecimento como com a opinião, e é necessária para auxiliar todas as nossas outras faculdades intelectuais, e na verdade contém duas delas, a saber: sagacidade e ilação. Pela primeira, descobrem-se as ideias intermédias; e pela segunda, ordenam-se, de maneira que possam revelar que conexão existe em cada elo da cadeia que una os dois extremos, e desse modo apresenta à vista, por assim dizer, a verdade procurada que é aquilo a que chamamos ilação ou inferência, que não consiste senão na percepção da conexão que há entre as ideias, em cada passo da dedução, pelo que o espírito chega a ver ou a certa concordância ou discordância de duas ideias, como na demonstração que a conduz ao conhecimento, ou a sua provável conexão, à qual concede ou recusa o seu assentimento, como na opinião. A sensação e a intuição alcançam muito pouco. A maior parte do nosso conhecimento depende das deduções e ideias intermédias; e naqueles casos em que estamos dispostos a substituir o assentimento pelo conhecimento e a tomar as proposições por verdadeiras, sem ter a certeza de que seja assim, temos necessidade de descobrir, examinar e comparar os fundamentos da sua probabilidade. Em ambos os casos, a faculdade que descobre os meios e os aplica devidamente para descobrir a certeza ou a probabilidade, é o que chamamos razão. Porque, assim como a razão percebe a necessária e indubitável conexão de todas as ideias ou provas em cada passo de qualquer demonstração que produza conhecimento, assim também percebe a conexão provável que existe entre todas as ideias ou provas em cada passo de uma dissertação que julgue merecedora do seu assentimento. Isto constitui o grau mais baixo do que propriamente se pode chamar razão. Porque, quando o espírito não percebe esta conexão provável, quando não discerne se existe ou não semelhante conexão, então as opiniões dos homens não são o produto do juízo, ou a consequência da razão, mas os efeitos do acaso numa mente aberta a todas as aventuras, sem escolha e sem direcção.» John LOCKE, Ensaio sobre o Entendimento Humano IV, 17. Coordenação da tradução por Eduardo Abranches de Soveral, 5ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, vol. II, pp.[929]-[930].

 

Exercício de interpretação

a) Em quantos sentidos se pode entender razão, segundo este texto? Quais são? Há algum sentido preferencial? Justifique.

b) Em que consiste e como se origina o nosso conhecimento?

c) O que é que está em questão, neste texto, sobre a razão?

d) Como se relaciona a razão com a sagacidade e a ilação ou inferência?

e) Como se distingue o conhecimento da opinião?

f) Toda a opinião é racional?

 

 

Texto 22

 

Bertrand RUSSELL

 

«Uma maneira de descobrir aquilo de que trata uma proposição é perguntarmos a nós próprios que palavras temos de entender - por outras palavras, com que objectos temos de ter contacto - em ordem a ver aquilo que a proposição significa. Quando vemos aquilo que a proposição significa, mesmo se não soubermos ainda se é verdadeira ou falsa, é evidente que temos de ter contacto (have acquaintance) com aquilo com que a proposição realmente lida. Aplicando este teste, percebe-se que muitas proposições que poderiam parecer concernentes a particulares concernem realmente apenas a universais. No caso específico de ‘dois e dois são quatro’, mesmo quando o interpretamos como significando ‘qualquer colecção formada por dois dois é uma colecção de quatro’, é claro que nós podemos entender a proposição, i.e. podemos ver aquilo que ela assevera, desde que conheçamos aquilo que é significado por ‘colecção’, ‘dois’ e ‘quatro’. É praticamente desnecessário conhecer todos os pares no mundo: se fosse necessário, obviamente nunca poderíamos entender a proposição, uma vez que os pares são infinitamente numerosos e por isso não podem ser todos por nós conhecidos. Assim, embora a nossa declaração geral implique declarações sobre pares particulares, quando conhecemos que existem tais pares particulares, ela própria não assevera nem implica que existam tais pares particulares e, assim, falha em fazer qualquer declaração sobre qualquer actual par particular. A declaração feita é sobre o ‘par’, o universal, e não sobre este ou aquele par particular.

Assim, a declaração ‘dois e dois são quatro’ trata exclusivamente de universais, e por isso pode ser conhecida por qualquer pessoa que tenha contacto com os universais concernentes e que possa perceber a relação entre eles, que a declaração assevera. Tem de ser tomado como um facto, descoberto pela reflexão sobre o nosso conhecimento, que nós temos o poder de perceber por vezes tais relações entre os universais, e, por conseguinte, de conhecer por vezes proposições gerais a priori, como as da aritmética e da lógica.» Bertrand RUSSELL, The Problems of Philosophy (1ª ed.,1912). 9ª impressão da ed. de 1967, com apêndice, Oxford/ Nova Iorque, Oxford University Press, 1980, p.60 (Tradução nossa).

 

Exercício de interpretação

a) O que é que é preciso para compreendermos uma proposição, i.e., uma frase declarativa?

b) Do que trata a proposição ‘dois e dois são quatro’?

c) Do que tratam as proposições da aritmética e da lógica: de universais ou de particulares?

d) De que tratam as proposições da linguagem corrente: de universais ou de particulares?

e) Como conhecemos os universais?

 

 

Texto 23

 

Bertrand RUSSELL

 

«O problema que temos de discutir é se há alguma razão para crer naquilo que se chama ‘a uniformidade da natureza’. A crença na uniformidade da natureza é a crença que tudo aquilo que aconteceu ou há-de acontecer é um exemplo de alguma lei geral para a qual não há excepções. As cruas expectativas que estávamos a considerar estão todas sujeitas a excepções [Um cavalo que tem sido frequentemente conduzido por um certo caminho resiste à tentativa de ser conduzido numa direcção diferente. Os animais domésticos esperam comida quando vêem a pessoa que habitualmente os alimenta. ... Assim, os nossos instintos levam-nos certamente a acreditar que o Sol voltará a nascer amanhã, mas podemos não estar em melhor posição do que a galinha à qual, inesperadamente, é torcido o pescoço]. Mas a ciência habitualmente assume, pelo menos como hipótese de trabalho, que as regras gerais que têm excepções podem ser substituídas por regras gerais que não têm excepções. ‘Corpos sem suporte no ar caem’ é uma regra geral relativamente à qual os balões e os aviões são excepções. Mas as leis do movimento e a lei da gravidade, que dão conta do facto de que a maior parte dos corpos cai, também dão conta do facto de que balões e aviões podem subir; assim, as leis do movimento e a lei da gravidade não estão sujeitas a estas excepções.

A crença que o Sol nascerá amanhã poderia ser falsificada, se a Terra entrasse subitamente em contacto com um grande corpo que destruísse a sua rotação; mas as leis do movimento e a lei da gravidade não seriam infringidas por tal evento. A função da ciência é encontrar uniformidades, como as leis do movimento e a lei da gravidade, relativamente às quais, tanto quanto se estende a nossa experiência, não há excepções. Nesta pesquisa, a ciência foi apreciavelmente bem sucedida, e pode ser concedido que tais uniformidades se mantiveram até agora. Isto traz-nos de novo à questão: temos alguma razão, assumindo que aquelas uniformidades se mantiveram sempre no passado, para supor que elas se manterão no futuro?

Já se argumentou que temos razão para saber que o futuro será semelhante ao passado, porque aquilo que era o futuro se transformou constantemente no passado, e sempre se descobriu semelhante ao passado, de modo que nó realmente temos experiência do futuro, nomeadamente de tempos que eram antes futuro, que podemos chamar futuros passados. Mas este argumento constitui realmente uma petição do princípio em questão. Nós temos experiência de futuros passados, mas não de futuros futuros, e a questão é: será que os futuros futuros se assemelharão aos futuros passados? Esta questão não é para ser respondida por um argumento que começa apenas pelos futuros passados. Por conseguinte, nós temos ainda de procurar um princípio que nos habilite a saber que o futuro seguirá as mesmas leis que o passado.

[...]

[...]. Por exemplo, um homem que tenha visto um grande número de cisnes brancos poderia argumentar, pelo nosso princípio, que, com base nos dados, era provável que todos os cisnes fossem brancos, e este poderia ser um argumento perfeitamente pertinente. O argumento não é refutado pelo facto de alguns cisnes serem negros, porque uma coisa pode bem acontecer apesar do facto de alguns dados a tornarem improvável. No caso dos cisnes, um homem poderia saber que a cor é uma característica muito variável em muitas espécies de animais, e que, portanto, uma indução quanto à cor está particularmente sujeita ao erro. Mas este conhecimento poderia ser um dado novo, não provando de modo algum que a probabilidade relativamente aos nossos dados prévios tinha sido mal estimada. O facto, portanto, de que as coisas muitas vezes não satisfazem as nossas expectativas não é evidência a favor de que as nossas expectativas não serão provavelmente satisfeitas num caso dado ou numa classe dada de casos. Assim, o nosso princípio indutivo de modo nenhum pode ser refutado (disproved) por um apelo à experiência.

O princípio indutivo, no entanto, também não pode ser provado por um apelo à experiência. A experiência poderia concebivelmente confirmar o princípio indutivo no respeitante aos casos que já foram examinados; mas a respeito dos casos não examinados, é o princípio indutivo somente que pode justificar qualquer inferência do que foi examinado para o que não foi examinado. Todos os argumentos que, com base na experiência, inferem para o futuro ou para partes não experienciadas do passado ou do presente, assumem o princípio indutivo; por isso, nós nunca podemos usar a experiência para provar o princípio indutivo sem uma petição de princípio. Por conseguinte, nós temos ou de aceitar o princípio indutivo no terreno da sua evidência intrínseca ou renunciar a toda a justificação para as nossas expectativas sobre o futuro. Se o princípio é erróneo, não temos razão para esperar que o Sol nasça amanhã, para esperar que o pão seja mais nutritivo que uma pedra, ou para esperar que se nos atirarmos de um telhado para fora vamos cair. Quando vemos o que parece o nosso melhor amigo ao aproximar-se de nós, não teremos razão para supor que o seu corpo não é habitado pela mente do nosso pior inimigo ou pela de um completo estranho. Toda a nossa conduta é baseada em associações que funcionaram no passado, e que, por isso, consideramos que vão provavelmente funcionar no futuro; e esta probabilidade é dependente, para a sua validade, do princípio indutivo.

Os princípios gerais da ciência, como a crença no reino da lei, e a crença que todo o evento tem de ter uma causa, são tão completamente dependentes do princípio indutivo quanto as crenças da vida quotidiana. Todos esses princípios gerais são acreditados porque a humanidade encontrou inúmeros exemplos da sua verdade e não exemplos da sua falsidade. Mas isto não garante evidência para a sua verdade no futuro, a menos que o princípio indutivo seja assumido.» Bertrand RUSSELL, The Problems of Philosophy (1ª ed.,1912). 9ª impressão da ed. de 1967, com apêndice, Oxford/ Nova Iorque, Oxford University Press, 1980, pp.35-36, 37-38 (Tradução nossa).

 

Exercício de interpretação

a) A que problema se refere inicialmente este texto?

b) De que princípio trata este texto? Procure formulá-lo explicitamente.

c) Como é que tal princípio se relaciona com a experiência? É fundado na experiência? É comprovado pela experiência?

d) Qual é a importância de tal princípio para o conhecimento humano?

e) Como conhecemos esse princípio?

 

 

Texto 24

 

Ludwig WITTGENSTEIN

 

[Jogos de linguagem]

«61.… Um significado de uma palavra é um género de utilização desta.

Porque é aquilo que aprendemos quando a palavra é incorporada na nossa linguagem.

62. É por isso que existe correspondência entre os conceitos “regra” e “significado”.

63. Se imaginamos os factos diferentemente do que são, certos jogos de linguagem perdem alguma importância, enquanto outros se tornam importantes. E, desse modo, há uma alteração – gradual – no uso do vocabulário de uma língua.

64. Compare-se o significado de uma palavra com a “função” de um funcionário. E “diferentes significados” com “diferentes funções”.

65. Quando os jogos de linguagem mudam, há uma modificação nos conceitos e, com as mudanças nos conceitos, os significados das palavras mudam também.» Ludwig WITTGENSTEIN, Da Certeza. Edição bilingue, trad. de Maria Elisa Costa, rev. de António Fidalgo, Lisboa, Edições 70, 1990, p.31.

 

[A dúvida e a questão do fundamento na experiência]

«121. Poderá alguém dizer: “Onde não há dúvida, também não há conhecimento”?

122. Não precisaremos de razões fundamentadas para duvidar?

123. Para onde quer que olhe, não encontro razão fundamentada para duvidar de que…

124. Quero dizer: usamos juízos como princípios para a formulação de juízos.

125. Se um cego me perguntasse: “Tem duas mãos?” eu não me asseguraria olhando para elas. Se tivesse alguma dúvida, então não sei por que acreditaria nos meus olhos. Então, qual a razão para não testar os meus olhos olhando para verificar se vêem as minhas duas mãos? O que tem de ser verificado e pelo quê? (Quem decide o que é ponto assente?). – E o que é que significa dizer que isto ou aquilo é ponto assente?

126. Não tenho mais certezas quanto ao significado das minhas palavras do que tenho acerca de certos juízos. Posso duvidar de que se chama “azul” a esta cor? – (As minhas) dúvidas formam um sistema.

127. Com efeito, como é que sei que alguém duvida? Como é que sei que ele usa as palavras “Duvido disso” como eu uso?

128. Desde criança que aprendi a formar juízos assim. Isto é fazer juízos.

129. Eis como aprendi a fazer juízos; aprendi isto como sendo um juízo.

130. Mas não será a experiência que nos ensina a fazer juízos desta maneira, isto é, que é correcto julgar assim? Mas como é que a experiência nos ensina, então? É possível que nós consigamos isso através da experiência, mas a experiência não nos ensina a conseguir seja o que for da experiência. Se é o fundamento para nós julgarmos assim (e não apenas a causa), continuamos sem ter fundamento para encarar isso, por sua vez, como fundamento.

131. Não, a experiência não é o fundamento para o nosso jogo de juízos. Assim como também não o é o seu êxito notável.» IDEM, Op. cit., pp.47-49.

 

[Um sistema de crenças]

140. Não aprendemos a prática de formular juízos empíricos através da aprendizagem de regras: ensinam-nos juízos e a sua ligação a outros juízos. Torna-se plausível para nós uma totalidade de juízos.

141. Quando começamos a acreditar em qualquer coisa, aquilo em que acreditamos não é uma proposição isolada, é um sistema completo de proposições. (Faz-se luz gradualmente sobre o conjunto).

142. Não são os axiomas isolados que me parecem óbvios, é um sistema em que as conclusões e as premissas se apoiam mutuamente.

143. Contam-me, por exemplo, que alguém subiu a esta montanha há muitos anos. Informo-me sempre sobre a confiança que merece o narrador e se a montanha existia de facto há anos? Uma criança aprende que há informadores fidedignos e não-fidedignos muito mais tarde do que aprende factos que lhe são contados. Não aprende de modo algum que essa montanha existe há muito tempo: isto é, não se põe em questão isso ser assim. A bem dizer, engole essa conclusão juntamente com aquilo que aprende.

144. A criança aprende a acreditar num grande número de coisas. Isto é, aprende a actuar de acordo com essas convicções. Pouco a pouco forma-se um sistema daquilo em que acredito e, nesse sistema, algumas coisas permanecem inabalavelmente firmes, enquanto algumas outras são mais ou menos susceptíveis de alteração. Aquilo que permanece firme não o é assim por ser intrinsecamente óbvio ou convincente; antes aquilo que o rodeia é que lhe dá consistência.» IDEM, Op. cit., p.53.

 

[Do que não se pode duvidar]

«220. O homem sensato não tem certas dúvidas.

221. Posso duvidar daquilo de que quero duvidar?

222. Não posso duvidar de que nunca estive na estratosfera. Será que isso me faz sabê-lo? Torná-lo-á verdade?

223. Pois não poderia eu ser louco e não duvidar daquilo de que deveria absolutamente duvidar?

224. “Eu sei que nunca aconteceu porque, se tivesse acontecido, não teria sido possível esquecê-lo”. – Mas, supondo-se que aconteceu mesmo, teria pois acontecido que você se esqueceu disso. E como sabe que não poderia esquecer-se? Não será justamente a partir de uma experiência anterior?

225. Aquilo a que me agarro não é uma proposição, mas um conjunto de proposições.» IDEM, Op. cit., pp.69-71.

 

[Numa comunidade ligada pela ciência e pela educação]

«291. Sei que a Terra é redonda. Verificámos definitivamente que a Terra é redonda. – Manteremos esta opinião, a menos que mude toda a nossa visão da natureza. “Como é que sabe isso?” – Acredito nisso.

292. Novas experiências não podem contradizer as anteriores, quando muito podem alterar toda a nossa visão das coisas.

293. Do mesmo modo acontece com a frase “A água ferve a 100º C.”

294. É assim que adquirimos convicções, chama-se a isto “estar convencido com razão”.

295. Não se tem, nesse sentido, uma prova da proposição? Mas o facto da mesma coisa ter acontecido de novo não a prova; ainda que digamos que nos dá direito a supô-la.

296. É a isto que chamamos um “fundamento empírico” das nossas hipóteses.

297. Porque aprendemos, não só que estas e aquelas experiências deram estes e aqueles resultados, mas também a conclusão que se tira. E, evidentemente, não há nada de errado em procedermos assim. Porque esta proposição inferida é um instrumento para uma utilização definida.

298. “Estamos muito certos disso” não significa que toda e qualquer pessoa esteja certa disso, mas que pertencemos a uma comunidade que está ligada pela ciência e pela educação.

299. Estamos convencidos de que a Terra é redonda.» IDEM, Op. cit., p.87.

 

Exercício de interpretação

a) Tem sentido duvidar de tudo ou só se pode duvidar quando se tem certezas? Qual é a resposta que Wittgenstein prefere aqui dar?

b) Qual o fundamento das nossas certezas? A experiência?

c) Qual o alcance de conceitos, como “jogos de linguagem”, “jogos de juízos”, “sistemas de crenças”, para o esclarecimento da correlação dúvida-certeza?

d) Um homem sensato pode ser um filósofo?

e) Qual o valor da comunidade ligada pela ciência e pela educação para a filosofia?

 

 

Texto 25

 

Edgar MORIN

 

«O conhecimento não é um espelho das coisas ou do mundo externo. Todas as percepções são, ao mesmo tempo, traduções e reconstruções cerebrais com base em estímulos ou sinais captados e codificados pelos sentidos. Daí resultam, sabemos bem, os inúmeros erros de percepção que nos vêm de nosso sentido mais confiável, o da visão. Ao erro de percepção acrescenta-se o erro intelectual. O conhecimento, sob forma de palavra, de idéia, de teoria, é o fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro. Este conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo e de seus princípios de conhecimento. Daí os numerosos erros de concepção e de idéias que sobrevêm a despeito de nossos controles racionais. A projeção de nossos desejos ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os riscos de erro.

Poder-se-ia crer na possibilidade de eliminar o risco de erro, recalcando toda afetividade. De fato, o sentimento, a raiva, o amor e a amizade podem-nos cegar. Mas é preciso dizer que já no mundo mamífero e, sobretudo, no mundo humano, o desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade, isto é, da curiosidade, da paixão, que, por sua vez, são a mola da pesquisa filosófica ou científica. A afetividade pode asfixiar o conhecimento, mas pode também fortalecê-lo. Há estreita relação entre inteligência e afetividade: a faculdade de raciocinar pode ser diminuída, ou mesmo destruída, pelo déficit de emoção; o enfraquecimento da capacidade de reagir emocionalmente pode mesmo estar na raiz de comportamentos irracionais.

Portanto, não há um estágio superior da razão dominante da emoção, mas um eixo intelecto ↔ afeto e, de certa maneira, a capacidade de emoções é indispensável ao estabelecimento de comportamentos racionais.

O desenvolvimento do conhecimento científico é poderoso meio de detecção dos erros e de luta contra as ilusões. Entretanto, os paradigmas que controlam a ciência podem desenvolver ilusões, e nenhuma teoria científica está imune para sempre contra o erro. Além disso, o conhecimento científico não pode tratar sozinho dos problemas epistemológicos, filosóficos e éticos.» Edgar MORIN, Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya, revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho, 2. ed., São Paulo, Cortez Editora; Brasília, UNESCO, 2000, pp.20-21.

 

Exercício de interpretação

a) O que é que o conhecimento não é?

b) Quais são os elementos que constituem a complexidade do conhecimento humano?

c) O conhecimento científico é infalível?

 

 

 

2.2. Que devo fazer? Questões de filosofia prática

 

Texto 26

 

PLATÃO

 

«[Gláucon] Ora diz-me: não te parece que há uma espécie de bem, que gostaríamos de possuir, não por desejarmos as suas consequências, mas por o estimarmos por si mesmo, como a alegria e os prazeres que forem inofensivos e dos quais nada resulta de futuro, senão o prazer de os possuirmos?

– Parece-me – disse eu [Sócrates] – que existe um bem dessa espécie.

– E aquele bem de que gostamos por si mesmo e pelas suas consequências, como por exemplo a sensatez, a vista, a saúde? Pois tais bens, apreciamo-los por ambos os motivos.

– É, sim – repliquei.

– E vês uma terceira espécie de bem, no qual se compreende a ginástica e o tratamento das doenças, e a prática clínica e outras maneiras de obter dinheiro? De tais bens diríamos que são penosos, mas úteis, e não aceitaríamos a sua posse por amor a eles, mas sim ao salário e a outras consequências que deles derivam.

– Existe, com efeito, esta espécie ao lado das outras duas. Mas que queres tu dizer?

– Em qual delas colocas a justiça?

– Acho que na mais bela, a que deve estimar por si mesma e pelas suas consequências quem quiser ser feliz.» PLATÃO, República II, 357 b – 358 a. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1976², pp.53-54.

 

Exercício de interpretação

a) Platão discrimina várias espécies de bens: quantas e quais? Caracterize e exemplifique cada uma delas.

b) Como é que Platão ordena as várias espécies de bens?

 

 

Texto 27

 

BOÉCIO

 

«2 Com efeito, das coisas que são feitas, aquilo por causa de que é feita cada coisa pode parecer com razão que é prémio dessa coisa, tal como o prémio de correr no estádio é aquilo por que se corre, a coroa. 3 Ora mostrámos que a felicidade é o próprio bem por causa do qual tudo se faz: os actos humanos têm, assim, o próprio bem como objectivo comum. 4. E mostrámos também que isto não pode ser separado dos bons, nem pode ser chamado bom sem faltar à verdade aquele que carece do bem. É por isso que os bons comportamentos não deixam de ter as respectivas recompensas. 5. Sejam quais forem, então, os estragos causados pelos maus, não cairá a coroa da cabeça do sábio, não há-de murchar. 

E a maldade de outrem não retira aos bons espíritos a glória que lhes é própria. 6 E se a alegria do homem de bem resultasse de algo recebido do exterior, isto podia ser retirado por outrem ou até pelo próprio que lho tivesse dado, mas, visto que é a sua própria probidade que traz a cada um esta recompensa, o homem de bem só ficaria sem o seu prémio quando deixasse de ser probo. 7 Por fim, quando todo o prémio é procurado pelo facto de se julgar que é bom, quem julgará que aquele que está na posse do bem não tem parte no prémio? 

E de que prémio? Do maior e mais belo de todos. […]: 9 uma vez que a felicidade é o próprio bem, é evidente que todos os bons, pelo próprio facto de serem bons, se tornam felizes. 10 Por outro lado, aqueles que são felizes é razoável que sejam deuses. Existe, com efeito, um prémio dos bons, que nenhuma passagem do tempo pode corroer, nenhum poder, seja de quem for, pode diminuir, nenhuma maldade pode ofuscar, e esse prémio é tornarem-se deuses.» BOÉCIO, Consolação da Filosofia, IV, P.3. Tradução de Luís M.G. Cerqueira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, pp.137-138.

 

Exercício de interpretação

a) Fazer o bem compensa, segundo o texto de Boécio?

b) Que termo usaríamos nós hoje para falar do que Platão e Boécio chamam “bens”? Qual o significado dessa alteração vocabular?

 

 

Texto 28

 

PLATÃO

 

«Cumpriu-se então completamente o nosso sonho, aquilo que nós suspeitávamos, que logo que começássemos a fundar a cidade, podíamos, com o auxílio de algum deus, ir dar a qualquer princípio e modelo da justiça.

– Absolutamente.

– Ora a verdade, ó Gláucon, é que – e por essa razão prestou-nos um serviço – era uma imagem da justiça, o princípio de que o que nasceu para ser sapateiro faria bem em exercer esse mester, com exclusão de qualquer outro, e o que nasceu para ser carpinteiro em ter essa profissão, e assim por diante.

– Assim parece.

– Na verdade, a justiça era qualquer coisa neste género, ao que parece, excepto que não diz respeito à actividade externa do homem, mas à interna, aquilo que é verdadeiramente ele e o que lhe pertence, sem consentir que qualquer das partes da alma se dedique a tarefas alheias nem que interfiram umas nas outras, mas depois de ter posto a sua casa em ordem no verdadeiro sentido, de ter autodomínio, de se organizar, de se tornar amigo de si mesmo, de ter reunido harmoniosamente três elementos diferentes, exactamente como se fossem três termos numa proporção musical, o mais baixo [concupiscência], o mais alto [razão] e o intermédio [irascibilidade], e outros quaisquer que acaso existam de permeio, e de os ligar a todos, tornando-os, de muitos que eram, numa verdadeira unidade, temperante e harmoniosa, – só então se ocupe (se é que se ocupa) ou da aquisição de riquezas, ou dos cuidados com o corpo, ou de política ou de contratos particulares, entendendo em todos estes casos e chamando justa e bela à acção que mantenha e aperfeiçoe estes hábitos, e apelidando de sabedoria a ciência que preside a esta acção; ao passo que denominará de injusta a acção que os dissolve a cada passo, e ignorância a opinião que a ela preside.» PLATÃO, República IV, 443 b – 444 a. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1976², pp.204-205.

 

Exercício de interpretação

a) Segundo este texto, há uma dimensão exterior (imagem) e uma dimensão interior (modelo) da justiça: a que é que se refere Platão num e noutro caso?

b) Em que consiste “pôr a casa em ordem”, segundo este texto?

c) Quais são os hábitos a manter e a aperfeiçoar pelo homem interiormente justo?

d) Qual é a ciência que se ocupa da justiça?

 

 

Texto 29

 

SANTO AGOSTINHO

 

«De facto nada impede que se veja – no Paraíso: a vida dos bem-aventurados; – nos seus quatro rios: as virtudes da prudência, da fortaleza, da temperança e da justiça; – nas suas árvores: todas as ciências úteis; – nos frutos dessas árvores: os costumes dos homens piedosos; – na árvore da vida: a própria sabedoria, mãe de todos os bens; – na árvore da ciência do bem e do mal: a experiência do mandamento violado.» SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIII, 21. Tradução de J. Dias Pereira, Vol.II, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, [1209-1210].

 

«Aquilo que os gregos chamam ἐυπαϑείας, e a que Cícero chama em latim constantia, reduzem os estóicos a três “perturbações” da alma do sábio, pondo a vontade em lugar do desejo, o gozo em lugar da alegria e a precaução em lugar do temor. Quanto à “doença” ou “dor”, a que temos preferido chamar “tristeza” para evitar a ambiguidade, negaram eles que possa existir na alma do sábio. Dizem eles que a vontade aspira ao bem que o sábio pratica; que o gozo nasce da posse do bem que o sábio encontra em toda a parte; que a precaução evita o mal que o sábio deve evitar. Quanto à tristeza ela diz respeito ao mal já sucedido – e, como são de parecer que nenhum mal pode acontecer ao sábio, julgam impossível que alguma destas coisas subsista na sua alma. É assim que eles falam: querer, gozar, precaver – apenas ao sábio pertencem; desejar, alegrar-se, temer, contristar-se – são próprios apenas do insensato. Aqueles três afectos são as “permanências” (constantiae); os quatro seguintes são, na opinião de Cícero, “perturbações” ou, como lhes chama a maioria, “paixões” (passiones). Mas em grego, como disse, aquelas três chamam-se ἐυπαϑείαι, e estas quatro πάϑη.» IDEM, Op. cit., XIV, 8 [1255].

 

«Não experimentar a dor enquanto estamos neste lugar de miséria, obtém-se, como sentiu e disse um escritor deste século: Obtém-se muito caro – pelo preço da crueldade da alma e da insensibilidade do corpo [Crantor, filósofo académico do séc. IV a.C.]. Por isso o que os gregos chamam ἀπάϑεια (que, se pudesse ser, em latim se chamaria impassibilitas = impassibilidade) – com a condição de termos de a considerar (na alma e não no corpo) como uma vida livre de todo o sentimento oposto à razão e perturbador do espírito – é, com certeza, uma coisa boa e desejável, mas não é desta vida. […]

Mas se é ao estado de alma sem afecto algum que se chama ἀπάϑεια quem não terá esta insensibilidade pelo pior dos vícios? Pode dizer-se com razão que a perfeita beatitude não conhecerá o aguilhão do temor nem o da tristeza. Mas quem ousaria afirmar, sem de todo se afastar da verdade, que o amor e a alegria serão dela banidos? E se a ἀπάϑεια é o estado em que nenhum medo apavora e nenhuma dor nos oprime, com certeza que é preciso excluí-los desta vida se quisermos viver rectamente, isto é, como a Deus apraz; mas temos simplesmente que esperar pela vida eterna e bem-aventurada que nos foi prometida.

[…]

Mas a vida bem-aventurada e eterna possuirá um amor e uma alegria, não apenas rectos mas também certos: sem temor e sem dor. Assim já de certo modo aparece o que devem ser, nesta peregrinação, os cidadãos da Cidade de Deus, vivendo como ao espírito apraz, não como apraz à carne, isto é, como apraz a Deus e não como apraz ao homem – e o que serão um dia na imortalidade para que caminham.

Mas a cidade, isto é, a sociedade dos ímpios que vivem como aos homens apraz e não como apraz a Deus, […] – essa cidade é atormentada por aqueles afectos como outras tantas doenças e paixões. E se alguns desses cidadãos parecem dominar e regrar, por assim dizer, tais afectos da alma, tornam-se tão soberbos e tão arrogantes na sua impiedade que se incham tanto mais quanto menos sofrem. E se outros na sua vaidade, tanto mais monstruosa quanto mais rara, se tomam de amores pela sua própria impassibilidade ao ponto de se não deixarem comover nem excitar nem inclinar pelo menor sentimento, perdem toda a humanidade sem atingirem a verdadeira tranquilidade. Efectivamente, porque é duro, nem por isso é correcto, nem, porque é insensível, é por isso sadio.» IDEM, Op. cit., XIV, 9 [1265-1268].

 

Exercício de interpretação

a) De acordo com a descrição acima, o que era o Paraíso para Santo Agostinho?

b) Quem eram Cícero e os estóicos? E como é que Cícero distingue as boas das más paixões, segundo o testemunho de Santo Agostinho?

c) A vida bem-aventurada é uma vida sem paixões? O que é que a distingue da vida presente?

d) «Efectivamente, porque é duro, nem por isso é correcto, nem, porque é insensível, é por isso sadio»: o que quer isto dizer?

 

 

Texto 30

 

Maria do Céu PATRÃO e Walter OSSWALD

 

«“Ética” deriva do termo grego ethos o qual, […], conhece também uma dupla interpretação. Assim, na Antiguidade, ethos apresentava-se sob diferentes grafismos a que correspondiam dois diferentes sentidos também: ethos encontra-se na literatura grega pré-classica, particularmente na poesia, escrito com a primeira vogal longa (êthos, ἦθος; com um η = êta), significando “estrebaria”, “estábulo” ou “toca”, “covil” (Homero), “albergue” dos homens (Hesíodo) (D. Folscheid e J.-F. Mattei, “Éthique et langage”, in Philosophie, Éthique et Droit de la Médecine, coordenação de D. Folscheid, B. Feuillet-Le-Mintier, e J.-F. Mattei, Paris, PUF, 1997, p.18); ethos aparecia também escrito com a primeira vogal breve (éthos, ἔθος; com um ε = épsilon), significando então, preferencialmente (e sobretudo em Aristóteles), “hábito”, “costume”. Transpondo o termo ethos nos seus dois grafismos para o plano humano, subscreveríamos a posição de muitos intérpretes que os fazem corresponder, respectivamente: ao lugar próprio do homem, aquele que ele habita, a sua “interioridade”, “o lugar de onde brotam os actos” (I. Renaud e M. Renaud, “Ética e Moral”, in Bioética, coordenação de L. Archer, J. Biscaia, W. Osswald, Lisboa, Verbo, 1996, p.34); à prática comum do homem, os seus hábitos, as regras que segue. Assim sendo, “ética” mantém uma dupla significação evocando: o princípio da acção ou o que determina o homem a agir, exprimindo um ponto de vista teórico na exigência de fundamentação da acção (a razão por que agimos de uma determinada forma e não de outra); e o resultado de uma acção que se repete ou regras que a acção cumpre, exprimindo um ponto de vista prático na necessidade de uma normativa da acção (as normas ou regras a que nos subordinamos, a que obedecemos quando agimos).» Maria do Céu PATRÃO Neves e Walter OSSWALD, Bioética Simples. Lisboa, Verbo, 2008, pp.8-9.

 

Exercício de interpretação

a) Em que sentidos se pode falar de “ética”, tendo em conta a sua origem etimológica?

b) Em que sentido se pode dizer que a ética é o lugar próprio do homem?

 

 

Texto 31

 

Cristina BECKERT

 

«A sobrevalorização do poder, nos nossos dias – nas suas múltiplas facetas de autonomia e liberdade, mas também, de controle do mundo exterior, em particular da vida – gerou, paradoxalmente, áreas de fragilidade e vulnerabilidade a que a ética não pode permanecer alheia. Se, hoje, crianças, deficientes mentais, doentes em estado terminal, toxicodependentes, reclamam a nossa responsabilidade por e perante eles, precisamente porque vêem as suas capacidades de resposta diminuídas e o seu reduto de interioridade exposto às investidas do exterior, não vemos razão para que tal responsabilização não se estenda também a outras formas de alteridade, nomeadamente, àqueles seres que encarnam a fragilidade da vida em toda a sua nudez e que, por isso, estão ao mesmo tempo tão próximos e tão distantes de nós. É que, “se desenvolvemos as nossas faculdades intelectuais a um ponto incomparável com o deles, para fazermos delas, a maior parte das vezes, um mau uso, outras faculdades lhes foram reservadas que nos faltam ou que perdemos. Eles são a vida na sua forma mais pura, essa vida que é o seu único bem, enquanto nós nos atulhamos de posses inúteis, e é sempre brutalmente e quase sempre sem razão que a tomamos. Ao procurarmos preservar para as espécies selvagens regiões mais ou menos protegidas, é a nós próprios que protegemos, ao proteger a Terra.” (M. Yourcenar, “Protéger l’animal c’est nous sauver nous-mêmes”, in Des droits de l’animal aujourd’hui, Condé-sur- Noireau, Arlés-Corlet, 1997, pp.29-30)» Cristina BECKERT, “Ética animal: uma contradição nos termos?”, in Cristina Beckert (Coord.), Ética Ambiental. Uma Ética para o Futuro. Lisboa, CFUL, 2003, p.65.

 

Exercício de interpretação

a) Até onde se estende a ética, nos nossos dias? 

b) Que especialidades da ética decorrem da sua actual extensão?

b) Como se explica tal ampliação da ética na actualidade?

 

 

Texto 32

 

Pedro GALVÃO

 

«Ao adoptar o ponto de vista ético, queremos saber como agir de uma forma imparcialmente justificável e, para esse efeito, de um modo geral não temos de nos importar com aquilo que as leis dizem. Muita da argumentação subsequente envolve duas ideias elementares, que gostaria agora de clarificar. – Uma dessas ideias é um requisito de universalização. Podemos elucidá-lo assim: se pensamos que um determinado acto é errado, temos de pensar que todos os actos que sejam como esse nos aspectos eticamente relevantes também são errados. Em termos gerais: se julgamos que um acto tem uma certa propriedade moral (como ser errado, louvável, injusto ou simplesmente aceitável), temos de estar dispostos a fazer o mesmo juízo a respeito de qualquer acto que não difira dele em pelo menos um aspecto eticamente significativo. O simples facto de um acto ter sido realizado por mim, por exemplo, não tem relevância ética, dado que não o torna imparcialmente justificável.

Seria descabido julgar, violando o requisito da universalização, que um determinado acto é errado mas que um acto parecido é aceitável, ainda que estes não difiram em nenhum aspecto eticamente relevante. Isto nunca pode acontecer. Se há uma diferença moral entre actos, de tal forma que só um deles é errado, tem de haver uma razão para isso. (E podemos dizer o mesmo de outras coisas que, à semelhança dos actos, são objecto de avaliação ética, como práticas ou traços de carácter.) O requisito da universalização compele-nos, pois, a procurar razões que sustentam avaliações morais diferentes. Como havemos de fazer isso? Tentando encontrar princípios éticos que, plausivelmente, justifiquem essas avaliações. Suponha-se, por exemplo, que considero que uma dada pessoa agiu de forma aceitável ao agredir outra, embora pense que geralmente é errado agredir pessoas. Terei de apontar, então, uma diferença relevante entre o acto que avalio positivamente e a generalidade das agressões a pessoas. Imagine-se que afirmo que o facto de esse acto ter sido realizado em autodefesa é a razão que o torna eticamente aceitável. Estarei assim a aceitar o princípio de que em certas circunstâncias, como aquelas que se verificaram, não é errado agredir em autodefesa.

Passemos à outra ideia elementar. Esta consiste num requisito puramente lógico: se aceitamos um princípio ético, temos de aceitar tudo aquilo que decorre dele, isto é, todas as suas consequências ou implicações lógicas. Valerá a pena chamar a atenção para algo tão óbvio? Sim. Pois os princípios éticos têm implicações indefinidamente vastas e não nos apercebemos com facilidade de muitas delas. Certos princípios parecem muito atraentes em abstracto, mas, logo que começamos a descortinar algumas das suas implicações mais definidas, revelam-se difíceis de aceitar ou mesmo repugnantes. Para avaliar um princípio ético, há que pensar muito bem naquilo que este implica, considerando tanto situações reais como casos meramente possíveis, por muito improváveis ou extravagantes que sejam. Se não estivermos dispostos a aceitar algumas das implicações de um princípio ético, teremos de o corrigir ou simplesmente rejeitar, sob pena de inconsistência.

Para reflectir bem sobre questões éticas, não podemos perder de vista os requisitos indicados. Mas isso não basta. Importa também – entre outras coisas – dar a devida atenção aos factos apurados pelas ciências: factos biológicos, psicológicos, sociais. Todavia, ainda que a reflexão ética deva ser conduzida à luz desses factos, seria um erro julgar que as ciências, por si mesmas, nos permitem responder às questões éticas. Pois estas são questões essencialmente valorativas ou normativas – respeitam àquilo que as pessoas devem fazer, não àquilo que fazem de facto e às causas de o fazerem –, estando assim fora do domínio das ciências.» Pedro GALVÃO, Ética com Razões. Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pedro Galvão, 2015, pp.9-11.

 

Exercício de interpretação

a) O que é que torna “ético”, um acto humano?

b) “Ético” é também um ponto de vista sobre os actos humanos: quais são os requisitos desse ponto vista?

c) “Éticos” são também “princípios”: que relevância têm aqui os “princípios éticos”?

d) O que é que é mais importante nesta concepção da ética: a vontade, a razão ou o coração?

 

 

Texto 33

 

Miguel OLIVEIRA DA SILVA

 

«Porque a Bioética interessa a todos, todos têm que a tomar em mãos: a Bioética não é, apenas nem sobretudo, assunto de e para especialistas.

[…]

Em constante transgressão e aceleração, o acesso à novidade, um outro estatuto do tempo e a ultrapassagem de limites da natureza humana, num outro paradigma biomédico, enformam o acesso alargado a velhas e novas tecnologias.

Reivindica-se a protecção da liberdade e invoca-se a inocuidade da garantia do direito à escolha individual: cada um deve poder decidir o que quer para si mesmo no seu próprio e decidir os seus próprios limites – eis o denominador comum, o fio condutor dos “novos direitos” e das “novas liberdades”.

Sob indiferença ou desatenção de tantos e de tantas, este estado de coisas conduz, nuns casos, à “última liberdade”, pedido de morte antecipada. Noutros casos, fabricam-se novas crianças. E, em desigualdade de direitos, não se lhes reconhece nem a dignidade nem os direitos humanos fundamentais – direito à identidade e à historicidade pessoal – que se exigem e atribuem aos adultos.

[…]

A tecnocracia cria a sua própria normatividade, uma nova heteronomia da vontade, impondo as suas regras no mercado em novos e velhos costumes.

É a tecnociência, subtraída ao controlo da Ética e da regulação política, a ditar as regras desde o início até ao final da pessoa humana.

Tecnociência que, de algo constitutivo, intrínseco, libertador do ser humano, se subtrai a qualquer influência externa e passa, ela mesma, a ser a própria normatividade da acção humana: a técnica a ditar as normas à Ética. A tecnolatria [Terence Mathieu, Le Transhumanisme est un intégrisme. Paris, Cerf, 2016, p.52], a fé incondicional nas biotecnologias.

Confundem-se causas com consequências, chama-se mal ao bem e bem ao mal. E criam-se novas dependências, pseudo-deveres e obrigações na e para com a sociedade e nos próprios investigadores e profissionais de saúde.

Em tudo isto, por tudo isto, há que pensar bioeticamente.

Pensar bioeticamente supõe, nas ciências da vida, estar informado e informar com profundidade, participar, remar contra a apatia e anestesia geral que recusa ou evita o debate público de cidadãos e aceita um seu simulacro institucional.

Pensar bioeticamente significa, em qualquer caso, imediatamente e mediatamente, antecipar novas questões, ousar semear coisas díspares, questionar sofismas e falácias, enquadrar diferentes conflitos de princípios, direitos, deveres e interesses, verificar ideias e certezas feitas, interpretar, explicitar e desvelar preconceitos culturalmente omnipresentes, reconhecer epistemológica e heuristicamente com humildade os limites do conhecimento actual e sua precariedade, acolher e estimular iniciativas de cidadãos.

É tomar como ponto de partida a capacidade de espanto, a permanente inquietação e tensão das dissensões na biomedicina e suas tecnociências, estar atento às consonâncias e dissonâncias entre o tecnicamente possível, o moralmente desejável e o juridicamente aceitável e praticável – da lei à prática vai um grande passo –, numa moral que se deixa interrogar, não de semáforos ou de interditos, e que recusa a violência mediática e a lógica dicotómica, binária e bivalente do pró ou contra.

Pensar bioeticamente é, com base na indefectível sensibilidade moral, sentido de justiça e respeito pela alteridade e reciprocidade, saber viver o lugar do outro, sobretudo do mais vulnerável, do mais fragilizado, do mais desfavorecido, do não influente, do meu interlocutor antitético: nisto se arrimam o altruísmo, a tolerância, a solidariedade, aqui e agora, o real cuidado e responsabilidade com a dimensão norte-sul e transgeracional da problemática bioética, tanto quanto possível independente de lobbies e de interesses particulares.» Miguel OLIVEIRA DA SILVA, Eutanásia, Suicídio Ajudado, Barrigas de Aluguer. Para um Debate de Cidadãos. Lisboa, Caminho, 2017, pp.21-22, 30-32.

                

Exercício de interpretação

a) O que é “pensar bioeticamente”: um ponto de vista científico ou um valor ético? Justifique.

b) O que são os “novos direitos” e as “novas liberdade”?

c) O que é que mais se opõe à ética: os interesses particulares, os preconceitos, os lobbies ou a tecnociência? Justifique.

d) O que é que mais importa eticamente: a liberdade do indivíduo, o lugar do outro, ou o sentido de justiça? Justifique.

 

 

Texto 34

 

António DAMÁSIO

 

«Os seres humanos que originalmente terão proferido a regra de ouro do “tratar os outros como queremos que os outros nos tratem” tê-la-ão formulado com a ajuda do que sentiam quando eram maltratados, ou quando viam outros a serem maltratados. É certo que a lógica terá desempenhado um papel fundamental ao lidar com os factos, mas alguns desses factos cruciais eram sentimentos.

O sofrimento e o florescimento, os lados opostos do espectro, terão sido os principais motivadores da inteligência criativa que produziu culturas. Claro que igualmente responsáveis terão sido a experiência de emoções ligadas a desejos fundamentais — fome, o impulso sexual, a sociabilidade — ou ao medo, à fúria, ao desejo de poder e de prestígio, à cobiça e ambição, ao ódio, ao impulso que leva a destruir os adversários e tudo o que eles possuem. Com efeito, encontramos os sentimentos por trás de muitos aspectos da sociabilidade, a orientar a constituição de grupos, grandes e pequenos, e a manifestar-se nas ligações que os indivíduos criaram em torno dos seus desejos e em torno da maravilha da invenção, bem como por trás dos conflitos pela disputa de recursos e de parceiros sexuais, que se exprimem na agressividade e na violência.

Outros motivadores poderosos são as experiências de elevação, espanto e transcendência surgidas da contemplação da beleza, natural ou fabricada, da perspectiva de encontrar meios que nos levem, e aos outros, a prosperar, de chegar a uma possível solução para mistérios científicos e metafísicos, ou — porque não? — ao simples confronto com mistérios que ainda requerem solução.» António DAMÁSIO, A Estranha Ordem das Coisas. A Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas. Lisboa, Temas e Debates — Círculo de Leitores, 2017, p.32.

 

Exercício de interpretação

a) Qual é a tese que este texto defende sobre a origem da ética?

b) Como é que este texto reinterpreta o sentido da origem da filosofia?

 

 

  

2.3. Que me é permitido esperar? Questões sobre o futuro

 

Texto 35

 

SANTO AGOSTINHO

 

«A sociedade dos mortais, espalhada por toda a Terra até aos mais diversos lugares, está unida pela comunhão de uma só e mesma natureza. Ao buscar cada um a satisfação dos seus interesses e desejos, quando o que procura não basta a uma pessoa ou a todas, porque não é precisamente o que basta, esta sociedade cada vez se divide mais contra si própria e a parte que prevalece oprime a outra. A vencida sucumbe perante a vencedora, porque, ao poder e até à liberdade, prefere a paz, seja ela qual for, e a salvação. Por isso têm causado grande admiração os que preferiram a morte à servidão. De facto, em quase todos os povos ressoa, de certo modo como a voz da natureza, que é preferível, aos que acontece serem vencidos, submeterem-se aos vencedores, a sofrerem na guerra a devastação total. Daí resulta – não sem uma intervenção da providência de Deus, em cujo poder está que pela guerra se seja subjugado ou se subjugue – que uns sejam providos de reinos e outros sejam submetidos aos que reinam.

Mas, entre os múltiplos reinos da Terra, em que os interesses e as paixões dividiram a sociedade (a que nós damos o nome geral de Cidade do Mundo), distinguimos dois, cuja glória eclipsou os outros – primeiro o dos Assírios, e depois o dos Romanos –, diferentes mas não sem relações entre si, quer no tempo quer nos lugares. Efectivamente, tal como aquele surgiu primeiro e este depois, assim também um surgiu no Oriente e o outro no Ocidente; logo a seguir ao fim de um, iniciou-se o outro. Os outros reinos e os outros reis – direi que são como que apêndices destes.» SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XVIII, 2. Tradução de J. Dias Pereira, Vol.III, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, pp. [1699- 1700].

 

Exercício de interpretação

a) O que é a cidade do mundo, segundo este texto?

b) O que são os reinos da Terra? Dê exemplos: os do texto e outros.

c) Relacione os seguintes termos do texto: paz; morte; servidão; voz da natureza; providência de Deus.

 

 

Texto 36

 

Oswald SPENGLER

 

«A decadência do Ocidente, [...], significa nada mais nada menos do que o problema da Civilização. Apresenta-se-nos uma das questões básicas de toda a história superior. O que é a civilização, concebida como consequência orgânico-lógica, como remate e término de uma cultura?

Ora, cada cultura tem a sua própria civilização. Pela primeira vez, estas duas palavras, que até agora designavam uma vaga distinção ética, acham-se aqui empregadas num sentido periódico, como expressões de uma sucessão orgânica, estrita e necessária. A civilização é o destino inevitável de cada cultura. Com isso, alcançamos o cume onde se tornam solúveis os derradeiros, os mais difíceis problemas da morfologia histórica. Civilizações são os estados extremos, mais artificiosos, que uma espécie superior de homens é capaz de atingir. São um término. Seguem ao processo criador como o produto criado, à vida como a morte, à evolução como a rigidez, ao campo e à infância das almas como a decrepitude espiritual e a metrópole petrificada, petrificante. Representam um fim irrevogável, no qual sempre se chega, com absoluta necessidade.

Somente sob esse aspecto poderemos compreender o romano como sucessor do heleno. Somente assim cai sobre a última fase da Antiguidade uma luz, a revelar os seus mais ocultos segredos. Pois, que significa o fato - que unicamente palavras vazias podem discutir - o fato de os romanos terem sido bárbaros, bárbaros tais como não precedem uma época de grande crescimento, não a encerram? Desprovidos de alma, de filosofia, de arte, viris até à brutalidade, desconsiderados buscadores de triunfos reais, encontram-se eles situados entre a Cultura Grega e o nada. Sua imaginação, dirigida exclusivamente para as coisas práticas, é uma qualidade inexistente em Atenas. Os gregos tinham alma; os romanos, intelecto - eis a diferença! Assim se distinguem cultura e civilização, e isso não se aplica apenas à Antiguidade. Uma e outra vez aparece na História esse tipo de homens de mentalidade robusta, completamente avessa à metafísica. A suas mãos está entregue o destino espiritual e material de todas as épocas em declínio. A civilização pura, como processo histórico, consiste na demolição gradual de formas mortas, que já se tornaram inorgânicas.

A transição da cultura à civilização realizou-se na Antiguidade no decorrer do século IV a.C. No Ocidente, teve lugar durante o século XIX. A partir desses momentos, as grandes decisões espirituais já não são tomadas “no mundo inteiro”, para o qual toda e qualquer aldeia tem, afinal de contas, alguma importância. Concentram-se em três ou quatro metrópoles, que acabam de absorver o sumo da História, e em confronto com as quais o resto do país portador da respectiva cultura é rebaixado à categoria de “província”, que, por sua vez, não tem outra incumbência a não ser a de proporcionar às grandes cidades as suas derradeiras provisões em matéria de humanidade superior. Metrópole e Província! Nesses conceitos básicos de todas as civilizações apresenta-se para a História um problema de forma totalmente nova; problema esse que se depara principalmente a nós, os homens de hoje, mas que, por enquanto, não compreendemos em todo o seu alcance. No lugar de um mundo, colocamos uma cidade, um ponto onde converge a vida inteira de vastas regiões, enquanto definha todo o resto. Em vez de um povo rico em formas, unido à terra, surgiu um novo nómada, um parasita, o habitante das metrópoles, criatura meramente afeita aos fatos reais, desligada das tradições, parcela das massas flutuantes, amorfas, homem sem religião, inteligente, improdutivo, imbuído de profunda antipatia à classe agrícola (e, em especial, à sua categoria mais elevada, à aristocracia rural), homem que, portanto, representa um passo gigantesco em direção ao inorgânico, ao fim.» Oswald SPENGLER, A Decadência do Ocidente. Esboço de uma morfologia da História Universal (1959). Edição condensada por Helmut Werner, Lisboa, Edições New Face, 2000, pp.46-48.

 

«Quero convencer os meus leitores de que o Imperialismo é símbolo típico do final. Produz petrificações como os impérios egípcio, chinês, romano, ou como os mundos da Índia e do Islão, petrificações que ainda perduram por séculos e mesmo milénios, passando das mãos de um conquistador às de outro, corpos mortos, amorfos, desanimados, matéria gasta de uma grande história. O Imperialismo é civilização pura. Assumir essa forma de existência é o destino inalterável do Ocidente.» Ibid., p.51.

 

Exercício de interpretação

a) Explicite a distinção aqui presente entre cultura e civilização.

b) Quais são os exemplos de cultura e de civilização aqui considerados?

c) Que relevância têm aqui os conceitos de metrópole e de província?

d) Como se caracteriza aqui o homem civilizado?

e) O que significa a identidade entre imperialismo e civilização?

 

 

Texto 37

 

Martin HEIDEGGER

 

«H.: [...]. Entretanto, de há 30 anos para cá, tem vindo a tornar-se mais claro que o movimento planetário da técnica moderna constitui um poder cuja grandeza historicamente determinada dificilmente pode sobrevalorizar-se. Hoje, é para mim uma questão decisiva saber em que medida é que um sistema político (e qual) pode realmente ser conforme à era da técnica. Não tenho nenhuma resposta para tal pergunta. Não estou convencido que seja a democracia.

SP.: Bem, «a» democracia é um conceito que reúne em si representações muito diferentes. A questão está em saber se ainda é possível uma transformação desta forma política. Depois de 1945, o senhor tem-se pronunciado sobre as aspirações políticas do mundo ocidental, entre elas da democracia, da mundividência cristã expressa na política, assim como do estado de direito. E designa todas estas aspirações como «metades» (Halbheiten).

H.: Peço-lhe, em 1º lugar, que diga onde é que eu falei da democracia e de tudo isso que mencionou. Mas também as consideraria como «metades», visto que não vejo que nenhuma delas se enfrente realmente com o mundo técnico, pois, do meu ponto de vista, ainda partem da concepção de que a técnica, na sua essência, é algo que o homem tem na mão. Na minha opinião, isto não é possível. A técnica, na sua essência, é algo que o homem não domina por si mesmo.

SP.: Qual das correntes enunciadas [comunismo e americanismo, determinadas, segundo H., pelo movimento planetário da técnica moderna] é, na sua perspectiva, a mais adequada aos tempos que correm (zeitgemässe)?

H.: Não sei. Mas vejo aí uma questão decisiva. Haveria, em 1º lugar, que esclarecer o que é que se entende por adequado aos tempos que correm, o que é que significa aí «tempo». Mais ainda: seria de perguntar se a adequação aos tempos dá a medida da «verdade íntima» do agir humano, se essa medida não vem dada pelo agir do pensar e do poetar, por mais heterodoxa que esta viragem possa parecer.

SP.: Mas é óbvio que o homem não consegue ter nunca mão nos seus instrumentos. Veja-se o aprendiz de feiticeiro. Não acha demasiado pessimista dizer que não podemos ter mão nesse instrumento, certamente de muito maiores dimensões, que é a técnica moderna?

H.: Pessimismo não. O pessimismo e o optimismo são tomadas de posição demasiado superficiais no âmbito da reflexão de que nos ocupamos. E, sobretudo, a técnica moderna não é um «instrumento» (Werkzeug), nem tem já nada que ver com instrumentos.

SP.: E porque é que havemos de estar tão fortemente subjugados pela técnica?

H.: Eu não digo subjugados. O que eu digo é que ainda não encontrámos um caminho que responda à essência da técnica.

SP.: Poderia replicar-se-lhe com toda a ingenuidade: o que é que há aqui que precise ser dominado? A verdade é que tudo funciona. Cada vez se constroem mais centrais eléctricas. Produz-se de forma competente. Os homens estão bem acomodados nesta zona altamente tecnificada da Terra. Vivemos com bem-estar. Falta-nos, porventura, alguma coisa?

H.: Tudo funciona. É precisamente isso que é inquietante: tudo funciona, e o funcionar arrasta sempre consigo o continuar a funcionar, e a técnica arranca o homem da terra e desenraíza-o cada vez mais. Eu não sei se não os assusta — seja como for, a mim assusta-me — ver agora as fotografias da Terra feitas da Lua. Não é preciso nenhuma bomba atómica: o desenraizamento do homem já está aí. Nós já só temos relações puramente técnicas. Já não é na Terra que o homem hoje vive. Há pouco tempo, tive uma longa conversa, na Provença, com o poeta e combatente da resistência René Char. Estão a construir bases para mísseis na Provença e a região desertiza-se de uma maneira inimaginável. O poeta — que, com certeza, não é suspeito de sentimentalismo, nem de uma adoração tola do idílio — dizia-me que se o pensar e o poetar não conseguem alcançar o poder da não-violência, o desenraizamento que se está a dar do homem será o fim.

SP.: Mas temos que dizer que, apesar disso, preferimos estar aqui e que, de todos os modos, não podemos deixar de pertencer ao nosso mundo. E quem sabe se a missão do homem é estar nesta Terra? Seria pensável que o homem não tivesse absolutamente nenhuma missão. E também se poderia ver sempre como uma possibilidade do homem o lançar-se a outros planetas a partir desta Terra. Com certeza que já não estamos longe disso. Onde é que está escrito, afinal, que o sítio do homem seja este?

H.: Se estou bem informado, de acordo com a nossa experiência e história humanas, tudo o que é essencial, tudo o que é grandeza surgiu do homem ter uma pátria e estar enraizado numa tradição. A literatura contemporânea, por exemplo, é excessivamente destrutiva.

SP.: Perturba-nos que mencione aqui a palavra «destrutiva», até porque o termo adquiriu justamente por seu intermédio e na sua filosofia conotações niilistas num contexto totalmente englobante. Choca-nos ouvir a palavra «destrutiva» em relação à literatura, que possa vê-la ou tenha que vê-la absolutamente como parte desse niilismo.

H.: Devo dizer que a literatura a que me referi não é niilista nesse sentido pensado por mim.

SP.: De acordo com o que disse, vê manifestar-se uma tendência que conduz ao Estado absolutamente técnico ou que já nele desembocou. É assim?

H.: Sim! [Mas o estado técnico, justamente, é o que menos se corresponde com o mundo e a sociedade determinados pela essência da técnica. O estado técnico seria o mais servil e cego dos esbirros do poder da técnica.]

SP.: Bem, nesse caso, naturalmente, põe-se-nos o problema de se o homem corrente ainda pode influir sobre esta engrenagem do curso inevitável das coisas, ou se é a filosofia que pode ter essa influência, ou se são ambos em conjunto, na medida em que a filosofia leva o indivíduo ou vários indivíduos a uma determinada acção.

H.: [Com essa pergunta, voltamos ao início do nosso diálogo.] Se me permite expressar-me com brevidade e até, de certo modo, brutalmente, embora com base numa longa reflexão, a filosofia não pode provocar nenhuma alteração imediata do actual estado do mundo. Isto não é válido apenas em relação à filosofia, mas também a todos os sentires e anseios meramente humanos. Já só um Deus nos pode ainda salvar. Como única possibilidade, resta-nos preparar pelo pensamento e pela poesia uma disposição para o aparecer do Deus ou para a ausência do Deus em declínio; preparar a possibilidade de que [em vez de que, dito brutalmente, «estiquemos o pernil»] pereçamos perante o Deus ausente.

SP.: Há alguma conexão entre o seu pensamento e o amanhecer (Heraufkunft) desse Deus? Há aí, na sua maneira de ver, uma relação causal? Crê que nos podemos aproximar do Deus pelo pensamento?

H.: Não o podemos atrair mediante o pensar. Podemos, quando muito, despertar a disposição a esperá-lo.

SP.: Mas podemos ajudar?

H.: O dispor-se a estar disposto deveria ser a primeira ajuda. O mundo não pode ser aquilo que é e tal como é só mediante o homem, mas também não pode sê-lo sem o homem. Do meu ponto de vista, isto liga-se a que aquilo que eu designo por uma palavra há muito tradicional, multívoca e hoje desgastada, o «Ser», precisa do homem para a sua manifestação, custódia e configuração. Vejo a essência da técnica naquilo a que chamo Ge-Stell (com-posição), expressão amiúde ridicularizada e talvez infeliz. O imperar da com-posição (Ge-Stell) significa que o homem é situado, solicitado e provocado por um poder (Macht) que ele próprio não domina. Ajudar a que isto chegue a ser compreendido: não se pode pedir mais do pensar. A filosofia chega ao seu fim.» Martin HEIDEGGER, “Já só um Deus nos pode ainda salvar” — Entrevista concedida por Martin Heidegger à revista alemã Der Spiegel em 23 de Setembro de 1966 e publicada no n.º 23/1976. Tradução e notas de Irene Borges Duarte, Filosofia. Publicação Periódica da Sociedade Portuguesa de Filosofia, 3. n.1/2 (Lisboa, 1989), pp.120-122.

 

Exercício de interpretação

a) Qual é a questão que Heidegger coloca no início deste segmento da entrevista?

b) O que é que a técnica não é, segundo este texto?

c) O que é a técnica, segundo este texto?

d) Em que sentido é que a democracia é aqui uma «metade»?

e) Como lê o significado da frase «Já só um Deus nos pode ainda salvar»?

f) Que papel se reserva ainda à filosofia na era da técnica?

 

 

Texto 38

 

Hans-Georg GADAMER

 

«Estou muito longe de idealizar a história que precedeu as catástrofes das duas guerras mundiais. Em todo o caso, por sua causa produziu-se uma mudança tão colossal que não diz respeito apenas à posição da Europa no mundo e, com isso, a todas as expectativas de uma juventude que tanto então como agora procura o seu difícil caminho num panorama mundial incerto. A época das duas guerras mundiais deu dimensões globais a todas as coisas. Em política já não se trata do equilíbrio de forças na Europa, esse princípio fundamental de todas as actividades de política externa que todos compreendiam. Desde essa altura, trata-se de um equilíbrio global, da questão da coexistência de enormes concentrações de poder. Até as palavras “economia nacional”, que ainda continuamos a usar, soam notavelmente obsoletas. O que são as nações, o que é a “economia nacional” na era das multinacionais, na era da economia mundial, numa era que recebeu a sua autêntica fisionomia através da Revolução Industrial? Tudo isto é, decerto, consequência dos enormes avanços técnicos, estimulados pelo furor destruidor de duas guerras mundiais. A Revolução Industrial lançou nesta época, a segunda metade do nosso século, a época da reconstrução, uma onda de uma altura que nos inunda e arrasta a todos. Nesta situação há uma lei inviolável, uma necessidade iniludível de não ficar para trás e de alcançar todas as hipóteses de vida e de sobrevivência – mas, de um golpe, foi esta mesma que se transformou simultaneamente numa ameaça para a vida e para a sobrevivência de todos.

É esta a nova situação a que a Europa chegou – e não só a Europa – graças à evolução dos últimos decénios. Já não nos encontramos em nossa casa, no nosso pequeno, segmentado, rico e diverso continente. Estamos implicados em acontecimentos, ameaçam-nos acontecimentos, que não se limitam à nossa pequena pátria. Tenho de sublinhar bem o aspecto fundamental desta questão: refiro-me à lógica interna dos acontecimentos que nos conduziram aos seus limites extremos. Pela primeira vez, criou-se um arsenal de armas cuja utilização já não promete a vitória de ninguém, mas que significaria o suicídio colectivo da civilização humana. E existe, além disso, algo talvez mais grave – porque, que eu saiba, ninguém vê de que modo poderíamos dominar esta crise –, a crise ecológica, o esgotamento, a desertificação e a devastação dos recursos naturais da nossa terra natal. Estas são as duas ameaças que se apresentam hoje às condições de vida da humanidade em geral, em consequência do enorme crescimento da população e do ingente aumento do bem-estar nos países desenvolvidos.

Digo-o com toda a seriedade, não há nenhuma alternativa. A palavra está tingida de modo tão característico na nossa política diária, precisamente porque todos os que são capazes de pensar, ou de ser sinceros, sabem que não existe nenhuma alternativa. Só uma mudança na direcção dos processos que já estão em curso poderá talvez tornar possível a sobrevivência de todos, exigindo-nos esforços diferentes dos requeridos pelas actividades político-económicas ou de política externa. É deste balanço que devemos partir. A Europa está indissoluvelmente envolvida na crise mundial, e esta crise não é daquelas que têm uma solução patente. Todas as pessoas imersas na actividade política e económica estão bem conscientes de que todos nós, tanto no Leste como no Ocidente, nos aproximamos lentamente da zona fronteiriça da vida e da sobrevivência, e que para a nossa salvação comum temos de ver de que modo é que podemos evitar a transposição dessa fronteira.» Hans-Georg GADAMER, “Diversidade da Europa. Herança e Futuro”, in Idem, Herança e Futuro da Europa (1989). Tradução de António Hall, rev. Artur Mourão, Lisboa, Edições 70, 1998, pp.11-12.

 

Exercício de interpretação

a) No diagnóstico da situação do mundo na 2ª metade do séx.XX, H.-G. Gadamar considera metaforicamente uma “onda” gigantesca que nos afecta a todos: a que é que o filósofo se está a referir?

b) O que é que o texto identifica como sendo as causas dessa “onda”?

c) O texto emprega 1 vez a palavra “civilização”: em que sentido?

d) O texto identifica 2 grandes ameaças para a humanidade: quais são? Continuam na ordem do dia?

 

 

Texto 39

 

Samuel P. HUNTINGTON

 

«No mundo pós-guerra fria as diferenças mais importantes entre os povos não são ideológicas, políticas ou económicas. São culturais. Os povos e as nações estão a tentar responder à mais básica questão que os seres humanos enfrentam: quem somos nós? E respondem a esta pergunta da forma mais tradicional, tendo como referência o que mais conta para eles. As pessoas definem-se em termos de ascendência, religião, língua, história, valores, costumes e instituições. Identificam-se como grupos culturais: tribos, grupos étnicos, comunidades religiosas, nações e, a um nível mais amplo, civilizações. As pessoas usam a política não só para promoverem os seus interesses, mas também para definirem a sua identidade. Só sabemos quem somos quando sabemos quem não somos e, frequentemente, contra quem somos.

Os Estados-nações continuam a ser os principais actores na cena internacional. Como no passado, o seu comportamento é moldado não só pela busca de poder e riqueza, mas também por preferências, afinidades e diferenças culturais. Os agrupamentos mais importantes de Estados já não são os três blocos da guerra fria [bloco liderado pelos Estados Unidos, bloco liderado pela União Soviética e Terceiro Mundo, grupo de países não alinhados e palco da tensão entre os dois blocos], mas as sete ou oito maiores civilizações mundiais (mapa 1.3) [: Ocidental; Latino-americana; Africana; Islâmica; Sínica; Hindu; Ortodoxa; Budista; Japonesa]. As sociedades não ocidentais, principalmente no Extremo Oriente, estão a desenvolver a sua riqueza económica e a criar a base para um poder militar e uma influência política reforçados. Enquanto o seu poder e a sua autoconfiança aumentam, as sociedades não ocidentais reivindicam os seus próprios valores culturais e rejeitam os que lhes são «impostos» pelo Ocidente. O «sistema internacional do século XXI», declarou Henry Kissinger, «[...] compreenderá, pelo menos, seis grandes potências - os Estados Unidos, a Europa, a China, o Japão, a Rússia e, provavelmente, a Índia -, assim como um grande número de médios e pequenos países» [Diplomacy, Nova Iorque, Simon & Schuster, 1994, pp.23-24]. As seis maiores potências referidas por Kissinger pertencem a cinco civilizações muito diferentes e, além disso, há Estados islâmicos importantes cujas posições estratégicas, grande dimensão populacional e/ou recursos petrolíferos os tornam influentes nas questões mundiais. Neste novo mundo a política local é a da etnicidade, a política global é a das civilizações. A rivalidade das superpotências é substituída pelo choque das civilizações.

Neste novo mundo os conflitos mais generalizados, mais importantes e mais perigosos não ocorrerão entre classes sociais, entre ricos e pobres ou outros grupos economicamente definidos, mas entre povos pertencentes a entidades culturais diferentes. [...]

[...]

O Ocidente é e continuará a ser durante anos, a civilização mais poderosa. Contudo, o seu poder relativo face a outras civilizações está a diminuir. Enquanto o Ocidente tenta reafirmar os seus valores e proteger os seus interesses, as sociedades não ocidentais enfrentam um dilema. Algumas tentam emular o Ocidente e alinhar com ele. Outras sociedades, confucionistas e islâmicas, tentam expandir os seus poderes económico e militar e resistir ao Ocidente ou contrabalançá-lo. O eixo central da política mundial pós-guerra fria reside na interacção entre o poder e a cultura ocidentais e o poder e a cultura das civilizações não ocidentais.

Em resumo, o mundo pós-guerra fria é um mundo de sete ou oito civilizações maiores. As afinidades e diferenças culturais moldam os interesses, os antagonismos e as associações de Estados. Maioritariamente, os países mais importantes do mundo são produto de civilizações diferentes. Os conflitos locais que, muito provavelmente, podem escalar até guerras mais vastas são entre grupos e Estados de civilizações diferentes. Os padrões predominantes do desenvolvimento político e económico diferem de civilização para civilização. As questões cruciais da agenda internacional envolvem diferenças entre civilizações. O poder está a deslocar-se do Ocidente, que há muito predomina, para civilizações não ocidentais. A política global está a tornar-se multipolar e multicivilizacional.» Samuel P. HUNTINGTON, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial (The Clash of Civilizations - Remaking of World Order, 1996). Tradução de Henrique M. Lajes Ribeiro, Lisboa, Gradiva, 1999, pp.28-30.

 

Exercício de interpretação

a) Como se distingue o novo mundo pós-guerra fria do mundo da guerra fria?

b) Qual é o factor decisivo para a ordem mundial, para além da economia, da política e da ideologia, que este texto traz para primeiro plano?

c) O que significa «o choque das civilizações»?

d) O texto diz «as sociedades não ocidentais enfrentam um dilema»: qual é? E as sociedades ocidentais não enfrentam também um dilema: universalismo ou multiculturalismo?

 

 

Texto 40

 

Aleksandr DUGIN

 

«1. O mundo multipolar é uma alternativa radical ao mundo unipolar (que existe de facto na actual situação) dado que insiste na presença de uns quantos centros decisores independentes, a nível global.

2. Estes centros devem encontrar-se suficientemente e financeiramente equipados, sendo materialmente independentes de modo a conseguirem defender a sua soberania no caso de uma invasão directa levada a cabo por um inimigo potencial, como exemplo devemos ter a mais forte potência actual. Esta condição resume-se à capacidade de conseguir resistir à hegemonia estratégico-militar dos Estados Unidos e dos países da OTAN.

3. Esses centros decisores não devem aceitar sine qua non o universalismo dos padrões, normas e valores ocidentais (democracia, liberalismo, livre mercado, parlamentarismo, direitos humanos, individualismo, cosmopolitismo, etc.) e devem ser totalmente independentes da hegemonia espiritual do Ocidente.

4. O mundo multipolar não significa um regresso ao sistema bipolar, dado que hoje não existe qualquer força estratégica ou ideológica capaz de, por si só, resistir à hegemonia espiritual e material do Ocidente moderno e do seu líder - os Estados Unidos. Devem existir mais de dois polos num mundo multipolar.

5. O mundo multipolar não reconhece a soberania dos actuais Estados-nação, soberania essa que assenta numa base meramente legal e que não se confirma graças à ausência de poderio estratégico e económico e ainda potencial político. No século XXI ser um Estado nacional já não é suficiente para se ser uma entidade soberana. Em tais circunstâncias a verdadeira soberania só pode ser obtida por intermédio de uma combinação, de uma coligação de Estados. O sistema wesphaliano, que continua a existir de jure, já não reflecte a realidade do sistema das relações internacionais e precisa de ser revisto.

6. O multipolarismo não se reduz ao apolarismo nem ao multilateralismo, dado que não coloca o centro decisor (o pólo) no seio dum governo mundial, nem na clava dos EUA e dos seus aliados democráticos (o “Ocidente global”) nem ao nível das redes sub-estatais, ONGs e outras instâncias da sociedade civil. O pólo deve localizar-se noutra esfera qualquer.

Estes seis pontos definem a base para uma maior elaboração e resumem as principais características do multipolarismo.» Aleksandr DUGIN, Teoria do Mundo Multipolar. Tradução de Flávio Gonçalves, Lisboa, Instituto de Altos Estudos em Geopolítica & Ciências Auxiliares, 2012, pp.21-22.

 

Exercício de interpretação

a) Quais são os opostos do mundo multipolar?

b) Quais os objectivos da teoria do mundo multipolar?

c) Que consequências civilizacionais, culturais e políticas pode ter um mundo multipolar?

 

 

Texto 41

 

Viriato SOROMENHO-MARQUES

 

«Onde poderemos procurar o essencial? Na economia? No sistema financeiro? No comportamento dos dirigentes políticos? Na avidez invencível dos agentes do capitalismo? Todas essas teses já foram exploradas por dezenas de autores e desenvolvidas em milhares de páginas. Contudo, o essencial escapar-se-á entre os dedos se nos esquecermos do elemento comum a todas essas perguntas e às estratégias de resposta correspondentes. O traço unificador de todos os ângulos de análise é, sem dúvida, a esfera da política. A crise que assola a União Europeia, e em particular a Zona Euro, é uma crise de natureza política. O mal-estar que ameaça a qualidade de vida de tantos milhões de europeus, e que lança profundas interrogações existenciais sobre o futuro colectivo de mais de 500 milhões de almas (não falando, sequer, das inevitáveis repercussões internacionais que um colapso da Europa acarretaria para o resto do Mundo), tem uma raiz central na política. Nos contratos que os Estados europeus foram firmando entre si, desde o final da Segunda Guerra Mundial, com o objectivo de evitarem novas guerras de destruição maciça, depois dos trinta turbulentos e sangrentos anos que vão de 1914 a 1945.

[…]. Talvez não exista ninguém melhor do que o grande pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679) para nos ajudar a uma espécie de compreensão intuitiva e plástica do essencial desta crise. […].

No livro de Job, encontrou o pensador inglês as duas figuras simbólicas que vão balizar a sua visão da experiência política. Essas figuras são dois grandes animais, de proporções monstruosas, respectivamente, o maior animal marinho, o Leviatã, e o maior animal terrestre, o Behemoth. O primeiro desses simbólicos teriomórficos vai servir de título ao seu opus magnum, o Leviatã (1651). O segundo, Behemoth, encabeçará a obra concluída, entre 1666 e 1668, quando o autor já atingira oitenta anos. […]. No seu livro [Leviatã], Hobbes não fazia crónica histórica, mas pura teoria política. A figura do Leviatã era a de um monarca gigantesco, erguendo-se com os sinais do poder secular – a coroa e a espada – e religioso – o báculo episcopal – por cima de vales e montes, cidades e campos de cultivo. Adivinham-se ao longe uma linha de costa e velas de embarcações. O livro descreve os fundamentos do poder político. As razões e princípios da boa fundação do Estado. A situação limite inicial do “estado de natureza”. As forças que conduzem ao estado civil. O modo como o “contrato social” se afirma. As diferenças entre povo e multidão. O significado e as competências da soberania. O Estado é uma construção artificial. Frágil, mas indispensável para a sobrevivência da humanidade em condições de dignidade. Essa é uma dimensão essencial. O Leviatã separa a incerteza, a “miséria” de uma vida sempre à espera da morte violenta, da tranquilidade e segurança em relação à vida e aos bens, que só a lei e os poderes públicos podem garantir.

O Behemoth, pelo contrário, representa a monstruosa ebulição de uma sociedade onde a lei e a ordem se desagregam. […]. Na verdade, em Behemoth o que interessa, tal como em Leviatã, é a compreensão dos princípios dinâmicos que permitem pensar a complexidade da experiência política num plano superior. Fundamental e teórico. Em Behemoth, Hobbes mostra os desastres a que conduz uma sociedade onde a multiplicidade não se consegue harmonizar em instituições capazes de construírem decisões comuns. Uma sociedade onde a soberania permanece fragmentada, com cada parte em luta com todas as outras. Ao longo do livro, Hobbes descreve-nos esse “monstro de muitas cabeças” (many-headed monster), uma população de tal modo dilacerada e dividida que não conseguia transformar-se em povo, em fonte de uma soberania, de uma organização estadual capaz de garantir a paz e administrar a justiça. Nesse reino de violentas paixões e de paixões violentas, vemos sempre a luta pela preponderância de interesses particulares.» Viriato SOROMENHO-MARQUES, Portugal na Queda da Europa. Lisboa, Círculo de Leitores / Temas e Debates, 2014, pp.184-185, 187-189.

 

Exercício de interpretação

a) Donde procedem as figuras simbólicas de Leviatã e Behemoth?

b) O que significa Leviatã, como símbolo político?

c) O que significa Behemoth, como símbolo político?

d) Como é que os dois símbolos, Leviatã e Behemoth, afectam o sentido do futuro da Europa, segundo este texto?

 

 

Texto 42

 

Edgar MORIN

 

«A comunidade de destino planetário permite assumir e cumprir esta parte de antropo-ética, que se refere à relação entre indivíduo singular e espécie humana como todo. Ela deve empenhar-se para que a espécie humana, sem deixar de ser a instância biológico-reprodutora do humano, se desenvolva e dê, finalmente, com a participação dos indivíduos e das sociedades, nascimento concreto à Humanidade como consciência comum e solidariedade planetária do gênero humano.

A Humanidade deixou de constituir uma noção apenas biológica e deve ser, ao mesmo tempo, plenamente reconhecida em sua inclusão indissociável na biosfera; a Humanidade deixou de constituir uma noção sem raízes: está enraizada em uma “Pátria”, a Terra, e a Terra é uma Pátria em perigo. A Humanidade deixou de constituir uma noção abstrata: é realidade vital, pois está, doravante, pela primeira vez, ameaçada de morte; a Humanidade deixou de constituir uma noção somente ideal, tornou-se uma comunidade de destino, e somente a consciência desta comunidade pode conduzi-la a uma comunidade de vida; a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo, uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos e em cada um.

Enquanto a espécie humana continua sua aventura sob a ameaça de autodestruição, o imperativo tornou-se salvar a Humanidade, realizando-a.

Na verdade, a dominação, a opressão, a barbárie humanas permanecem no planeta e agravam-se. Trata-se de um problema antropo-histórico fundamental, para o qual não há solução a priori, apenas melhoras possíveis, e que somente poderia tratar do processo multidimensional que tenderia a civilizar cada um de nós, nossas sociedades, a Terra.

Sós e em conjunto com a política do homem (16. Cf. Edgar Morin. Introduction à une politique de l’homme, nouvelle édition. Le Seuil Points, 1999), a política de civilização (17. Cf. Edgar Morin, Sami Naïr. Politique de civilisation, Arlea, 1997), a reforma do pensamento, a antropo-ética, o verdadeiro humanismo, a consciência da Terra-Pátria reduziriam a ignomínia no mundo.» Edgar MORIN, Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya, revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho, 2. ed., São Paulo, Cortez Editora; Brasília, UNESCO, 2000, pp.113-114.

 

Exercício de interpretação

a) Explicite o conceito aqui presente de «antropo-ética».

b) Explicite o conceito aqui presente de «Humanidade».

c) Explicite o «problema antropo-histórico fundamental» aqui presente.

d) A civilização tem algum papel a desempenhar na melhoria do mundo?

 

 

Texto 43

 

AL GORE

 

«A relação fundamental entre a nossa civilização e o sistema ecológico da Terra foi radical e profundamente alterada devido à poderosa convergência de dois factores.

O primeiro é a explosão populacional, que, sob muitos aspectos, é uma história de sucesso, na medida em as taxas de mortalidade e de natalidade estão a descer em todo o mundo e as famílias estão, em média, a tornar-se mais pequenas. Mas, apesar destes avanços tão esperados estarem a dar-se mais rapidamente do que poderia prever-se há décadas, o crescimento da população mundial aconteceu de uma forma tão poderosa que a “explosão” ainda está a dar-se e continua a transformar a nossa relação com o planeta.

Se observarmos o aumento populacional no contexto da História, é obvio que os últimos 200 anos rompem completamente o padrão que prevaleceu durante a maior parte dos milénios em que os seres humanos caminharam sobre a Terra. A partir da era em que os cientistas dizem que a nossa espécie apareceu, há 160.000 ou 190.000 anos, até à era de Jesus Cristo e Júlio César, a população humana cresceu para 250 milhões de pessoas. No momento do nascimento da América, em 1776, tinha aumentado para mil milhões. Quando a geração do baby boom, à qual pertenço, nasceu, no final da Segunda Guerra Mundial, a população mal tinha ultrapassado os 2 mil milhões. Ao longo da minha vida, vi-a aumentar para 6,5 mil milhões. A minha geração irá vê-la chegar aos 9 mil milhões de pessoas.

[...]

Este aumento populacional rápido implica a procura de alimento, água e energia e de todos os recursos naturais, e exerce uma enorme pressão em áreas vulneráveis, especialmente nas florestas tropicais.

Isto leva-me ao segundo factor que transformou a nossa relação com a Terra: a revolução científica e tecnológica.

Novos avanços na ciência e na tecnologia trouxeram-nos enormes progressos em áreas como a medicina e as comunicações, entre muitas outras. Apesar de todas as vantagens que obtivemos com as novas tecnologias, testemunhámos também muitos efeitos colaterais imprevistos.

O novo poder que temos à nossa disposição nem sempre foi acompanhado por uma nova sabedoria na forma como o usamos, especialmente quando exercemos esse poder, tecnologicamente aperfeiçoado, para continuarmos a usar, incessantemente, hábitos antiquíssimos, que são, afinal, difíceis de mudar.

[...]

A guerra é um hábito antigo. As consequências da guerra travada com a tecnologia das lanças e espadas - ou dos arcos e setas, mosquetes e espingardas - eram horríveis, mas previsíveis.

Porém, em 1945 a tecnologia totalmente nova das armas nucleares alterou completamente esta equação.

Por conseguinte, tentámos reavaliar, e mudar, o velho hábito a que chamamos guerra. Embora tenhamos feito alguns progressos - tivemos uma Guerra Fria em vez de uma guerra nuclear total -, ainda há muito trabalho para fazer.

Do mesmo modo, sempre explorámos a Terra para garantirmos o nosso sustento, utilizando, ao longo da maior parte da nossa existência, tecnologias relativamente básicas, como lavrar, irrigar e cavar a terra. Mas até essas tecnologias simples se tornaram mais poderosas hoje.

[...]

A irrigação fez, desde sempre, maravilhas pela humanidade, mas hoje, temos a capacidade de desviar rios gigantescos segundo o nosso desígnio e não o da Natureza.

As nossas novas tecnologias, conjugadas com a dimensão actual da população, fizeram de nós, como colectivo, uma força da Natureza.

[...]

O terceiro e último factor causador da colisão entre a Humanidade e a Natureza e, simultaneamente, o mais subtil e o mais importante, é a nossa maneira de pensar sobre a crise climática.

E o primeiro problema na maneira como pensamos acerca da crise climática reside no facto de nos parecer que é melhor não pensar sequer nela. Uma razão por que não exige uma atenção consistente da nossa parte pode ser ilustrada por aquela história clássica acerca de uma velha experiência científica envolvendo uma rã que salta para uma panela de água a ferver e que imediatamente volta a saltar para fora dela, porque reconhece, instantaneamente, o perigo. A mesma rã, ao ver-se numa panela de água morna que está a ser levada lentamente ao ponto de fervura, ficará simplesmente na água, apesar do perigo... até ser salva.

(Costumava contar esta história da rã com um final diferente na frase anterior: “até a rã ficar cozida”. Mas depois de muitas apresentações de slides em que, no final, pelo menos um ouvinte angustiado vinha ter comigo para expressar a sua preocupação com o destino da rã, acabei por me aperceber da importância que teria salvá-la.)

Mas, evidentemente, o sentido mais lato da história é que o nosso “sistema nervoso” colectivo, através do qual reconhecemos um perigo que paira sobre a nossa sobrevivência, é semelhante ao da rã. Se experimentarmos uma alteração significativa nas circunstâncias que afectam a nossa vida, gradual e lentamente, somos capazes de ficar quietos, não reconhecendo a gravidade do que está a acontecer-nos senão quando já for demasiado tarde. Por vezes, tal como a rã, reagimos apenas a um abalo súbito, a uma alteração rápida e drástica que faz soar as nossas campainhas de alarme.

O aquecimento global parece gradual no contexto de uma vida, mas no contexto da história da Terra, está a acontecer a uma velocidade vertiginosa. O seu ritmo está agora a acelerar tão rapidamente que mesmo ao longo da nossa vida estamos a começar a ver as bolhas da fervura na panela.

Somos obviamente diferentes da rã. Não temos de esperar pelo ponto de ebulição para entendermos o perigo com que nos defrontamos - e temos todas as competências necessárias para nos salvarmos.» AL GORE, Uma Verdade Inconveniente. Tradução de Lucília Filipe, Lisboa, Esfera do Caos, 2006, pp. 216, 220, 232, 234, 236, 240, 249, 254-255.

 

Exercício de interpretação

a) Que factores determinam, segundo este texto, a relação da Humanidade com a Natureza?

b) Em que sentido considera este texto que a Humanidade se tornou uma força da Natureza?

c) Qual é o significado metafórico da rã neste texto?

d) Há campainhas de alarme a soar no contexto da crise climática que atravessamos?

e) Neste âmbito problemático da crise climática, o texto reconhece, pelo menos, três partes da solução: Natureza, Tecnologia e Sabedoria. Qual o papel que cabe a cada uma destas partes?

 

 

Texto 44

 

Yuval Noah HARARI

 

«Generación tras generación, los seres humanos rezaron a todos los dioses, ángeles y santos, e inventaron innumerabiles utensilios, instituciones y sistemas sociales ..., pero siguieron muriendo por millones a causa del hambre, las epidemias y la violencia. Muchos pensadores y profetas concluyeron que la hambruna, la peste y la guerra debían de ser una parte integral del plan cósmico de Dios o de nuestra naturaleza imperfecta, y que nada excepto el final de los tiempos nos libraría de ellas.

Sin embargo, en los albores del tercer milenio, la humanidad se despierta y descubre algo asombroso. La mayoría de la gente rara vez piensa en ello, pero en las últimas décadas hemos conseguido controlar la hambruna, la peste y la guerra. Desde luego, estos problemas no se han resuelto por completo, pero han dejado de ser fuerzas de la naturaleza incomprensibles e incontrolables para transformar-se en retos manejables. No necessitamos rezar a ningún dios ni a ningún santo para que nos salve de ellos. Sabemos muy bien lo que es necesario hacer para impedir el hambre, la peste y la guerra ..., y generalmente lo hacemos con éxito.

Es cierto: todavía hay fracasos notables, pero quando nos enfrentamos a dichos fracasos, ya no nos encogemos de hombros y decimos: «Bueno, así es como funcionan las cosas en nuestro mundo imperfecto» o «Hágase la voluntad de Dios». Por el contrario, cuando el hambre, la peste o la guerra escapan a nuestro control, sospechamos que alguien debe de haberla fastidiado, organizamos una comisión de investigación y nos prometemos que la siguiente vez lo haremos mejor. Y, en verdad, funciona. De hecho, la incidencia de estas calamidades va disminuyendo. Por primera vez en la historia, hoy en día mueren más personas por comer demasiado que por comer demasiado poco, más por vejez que por una enfermidad infecciosa, y más por suicidio que por asesinato a manos de la suma de soldados, terroristas y criminales. A principios del siglo XXI, el humano medio tiene más probabilidades de morir de un atracón en un McDonald’s que a consecuencia de una sequía, el ébola o un ataque de al-Qaeda.

De ahí que, aunque presidentes, directores ejecutivos y altos mandos del ejército siguen teniendo sus agendas diarias llenas de crisis económicas y conflictos militares, a la escala cósmica de la historia, la humanidad puede alzar la mirada y empezar a contemplar nuevos horizontes. Si en verdad estamos poniendo bajo control el hambre, la peste y la guerra, qué será lo que las reemplace en los primeros puestos de la agenda humana? Como bomberos en un mundo sin fuego, en el siglo XXI la humanidad necesita plantearse una pregunta sin precedentes: qué vamos a hacer con nosotros? En un mundo saludable, próspero y armonioso, qué exigirá nuestra atención y nuestro ingenio? Esta pregunta se torna doblemente urgente dados los inmensos nuevos poderes que la biotecnologia y la tecnología de la información nos proporcionan. Qué haremos con todo ese poder?» Yuval Noah HARARI, Homo Deus. Breve historia del mañana. 3ª ed., nova reimp., trad. de Joandomènec Ros, Barcelona, Penguin Random House Grupo Editorial, 2018, pp.11-12.

 

Exercício de interpretação

a) Como se distingue o presente do passado quando às principais calamidades que afligem a humanidade?

b) Qual é a pergunta que se impõe ao homem do presente sobre o futuro? E por que se impõe?

c) O que pode significar «a agenda humana» para o século XXI?

 

 

Texto 45

 

Yuval Noah HARARI

 

«El antídoto contra una existencia sin sentido y sin ley lo proporcionó el humanismo, un credo nuevo y revolucionario que conquistou el mundo durante los últimos siglos. La religión humanista venera a la humanidad, y espera que esta desempeñe el papel que Dios desempeñaba en el cristianismo y el islamismo y que las leyes de la naturaleza desempeñaban en el budismo y el taoísmo. Mientras que tradicionalmente el gran plan cósmico daba sentido a la vida de los humanos, el humanismo invierte los papeles y espera que las experiencias de los humanos den sentido al gran cosmos. Según el humanismo, los humanos deben extraer de sus experiencias internas no solo el sentido de su propria vida, sino también el sentido del universo entero. Este es el mandamiento primario que el humanismo nos ha dado: crea sentido para un mundo sin sentido.

Según esto, la revolución religiosa fundamental de la modernidad no fue perder la fe en Dios; más bien, fue adquirir fe en la humanidad.» Yuval Noah HARARI, Homo Deus. Breve historia del mañana. 3ª ed., nova reimp., trad. de Joandomènec Ros, Barcelona, Penguin Random House Grupo Editorial, 2018, p.249.

 

«En la actualidad, los humanistas creen que la única fuente de la créación artística y del valor estético son los sentimientos humanos. La música es creada y juzgada por nuestra voz interior, que no necesita seguir ni los ritmos de las estrellas ni las órdenes de las musas y los ángeles. Porque las estrellas son mudas, mientras que las musas y los ángeles existen únicamente en nuestra imaginación. Los artistas modernos buscan estar en contacto con ellos mismos y sus sentimientos, más que con Dios. Así, no es extraño que cuando nos disponemos a evaluar el arte, ya no creamos en ningún criterio objetivo. En lugar de ello, y una vez más, nos fiamos de nuestros sentimientos subjetivos.

En ética, el lema de los humanistas es: «Si hace que te sientas bien, hazlo». En política, el humanismo nos enseña que «el elector es quien mejor sabe lo que le conviene». En estética, el humanismo dice que «la belleza está en los ojos del espectador».» IDEM, Op. cit., pp.256-257.

 

«Por último, el auge de las ideas humanistas también ha revolucionado el sistema educativo. En la Edad Media, el origen de todo sentido y toda a autoridad era externo, y por lo tanto la educación se centraba en instilar en los discípulos obediencia, memorizar las escrituras y estudiar las tardiciones antiguas. Los profesores planteaban una pregunta a los discípulos, y los discípulos tenían que recordar de qué manera Aristóteles, el rey Salomón o santo Tomás de Aquino la habían contestado.

En cambio, la educación humanista moderna cree en enseñar a los alumnos a pensar por sí mismos. Es bueno saber qué opinaban Aristóteles, Salomón o santo Tomás de la política, el arte y la economía, pero, puesto que el origen supremo del sentido y la autoridad reside en nosotros mismos, es mucho más importante saber qué es lo que uno opina acerca de estas cuestiones. Pregúntesele a una profesora (ya sea de parvulario, de escuela o de instituto) qué es lo que intenta ensñar. «Bueno - contestará -, a los chicos les enseño historia o física cuántica o arte, pero, por encima de todo, intento enseñarles a pensar por sí mismos.» Puede que no siempre lo consiga, pero eso es lo que la educación humanista trata de hacer.» IDEM, Op. cit., pp.262-263.

 

Exercício de interpretação

a) Este texto apresenta uma acepção do humanismo: qual? O que é que a caracteriza no essencial?

b) O que é que caracteriza a ética humanista?

c) O que é que caracteriza a política humanista?

d) O que é que caracteriza a estética humanista?

e) O que é que caracteriza a educação humanista?

f) Somos todos humanistas?

 

 

Texto 46

 

Arlindo OLIVEIRA

 

«Consideremos agora uma classificação das mentes de acordo com as suas origens, os seus suportes computacionais, e as formas de inteligência que exibem. Designaremos por sintética uma mente que foi concebida artificialmente e não apareceu «naturalmente» através da evolução. Designaremos por natural uma mente se ela tiver aparecido através da evolução, como a mente humana e, porventura, as mentes de outros animais. Designaremos de digital uma mente se ela resultar do funcionamento de um programa que corre num computador digital. Finalmente uma mente será considerada biológica se resultar do funcionamento de um cérebro biológico. [...].

Todos estamos familiarizados com as mentes naturais, concebidas pela evolução. As mentes sintéticas, concebidas por processos diferentes da evolução para atenderem a necessidades específicas, serão possivelmente desenvolvidas nas próximas décadas. É provável que utilizem suportes digitais, embora, caso fossem desenvolvidas usando as ferramentas da biologia sintética (discutidas no capítulo 7) pudessem conceptualmente ser suportadas por sistemas biológicos.» Arlindo OLIVEIRA, Mentes Digitais. A Ciência Redefinindo a Humanidade (The Digital Mind: How Science is Redefining Humanity, 2017). Tradução de Jorge Pereirinha Pires, Lisboa, IST Press, p.200.

 

«Parece razoável assumir-se que as discussões sobre o estatuto jurídico das mentes digitais terão início logo que lhe sejam atribuídos direitos e responsabilidades. Os agentes digitais - programas de software que tomam decisões importantes em nome de indivíduos e corporações - já existem, e são responsáveis por muitos eventos que afetam as vidas humanas. Os mais visíveis deles - agentes de corretagem computadurizados, cujo comportamento se baseia em complexos conjuntos de regras e de algoritmos - afetam enormemente a economia e estiveram na origem de diversas crises económicas e outros acontecimentos perturbantes. Até agora, porém, têm sido responsbilizados pelas consequências das suas ações os indivíduos ou corporações que são proprietários de tais agentes, e não os próprios agentes. Essa é uma mera consequência do facto de, até agora, não ter sido concedido o estatuto de pessoa a qualquer entidade puramente digital.

Todavia, à medida que os agentes digitais se tornem mais complexos, é natural que as responsabilidades se desviem dos «proprietários» desses agentes para os próprios agentes. Na verdade, um dia o conceito de propriedade de um agente inteligente poderá vir a tornar-se um foco de dissensão caso seja concedido o estatuto de pessoa às mentes digitais. Todo esse processo demorará muito tempo e gerará muita discussão pelo caminho, mas creio que, a certo ponto, a sociedade terá de reconhecer as mentes digitais como pessoas autónomas, dotadas das suas próprias motivações, objetivos, direitos e responsabilidades. A questão de saber se uma mente digital tem personalidade jurídica será inevitável se a mente digital em causa tiver sido criada por meio da cópia de uma mente humana, uma tecnologia que poderá ser viável antes do fim do século, de acordo com as previsões mais otimistas. A sociedade terá de abordar o estatuto jurídico dessas mentes digitais, proporcionando-lhes algum conjunto de direitos e de responsabilidades civis. Designaremos tais entidades simplesmente de pessoas digitais, aplicando o termo a qualquer tipo de mente digital ao qual seja concedido algum tipo de personalidade jurídica.» Arlindo OLIVEIRA, Mentes Digitais. A Ciência Redefinindo a Humanidade (The Digital Mind: How Science is Redefining Humanity, 2017). Tradução de Jorge Pereirinha Pires, Lisboa, IST Press, 2017, p.230.

 

Exercício de interpretação

a) Sobre a ontologia das mentes: toda a mente sintética é digital? E toda a mente biológica é natural? Justifique as respostas.

b) O que significa a conversão das mentes digitais em pessoas digitais?

c) Que mundo novo se prenuncia neste texto: só homem e natureza? Ou mais o quê?

 

 

Texto 47

 

Arlindo OLIVEIRA

 

«Os investigadores da área da inteligência artificial, começando por Alan Turing, ansiavam muitas vezes por um tempo em que se tornasse possível criar inteligências artificiais de nível equivalente ao dos seres humanos. Não existe, porém, nenhuma razão particular para acreditar que exista alguma coisa de especial acerca do nível específico de inteligência que é exibido pelos seres humanos. Embora seja verdade que os seres humanos são muito mais inteligentes do que todos os outros animais, mesmo aqueles que dispõem de cérebros maiores, não é razoável esperar que a inteligência humana se situe no ponto máximo alcançável na escala da inteligência.

As inteligências sobre-humanas poderiam ser obtidas através de uma grande aceleração de um raciocínio semelhante ao humano (imaginemos um emulador integral do cérebro executado a 100000 vezes a velocidade do tempo real), agregando um grande número de inteligências de nível humano coordenadas entre si (naturais ou sintéticas), fornecendo a uma inteligência de nível humano enormes quantidades de dados e de memória ou desenvolvendo algumas novas formas de inteligência ainda desconhecidas. Tais inteligências sobre-humanas poderiam estar para a inteligência humana como a inteligência humana está para a inteligência de um chimpanzé. A sobrevivência dos chimpanzés, tal como a dos outros animais, depende agora menos deles do que de nós, que somos a forma de vida dominante na Terra. Isso não sucede por sermos mais fortes ou mais numerosos, mas apenas porque somos mais inteligentes e dispomos de tecnologias vastamente superiores.

Se alguma vez se desenvolver uma inteligência sobre-humana, não poderá acontecer que fiquemos tão dependentes dela quanto os chimpanzés estão agora de nós? A própria sobrevivência da raça humana poderá um dia depender da forma com que uma tal super-inteligência olhe para a humanidade. Uma vez que essa inteligência sobre-humana terá sido criada por nós, direta ou indiretamente, poderemos ter a possibilidade de planear o processo de forma a que tal inteligência sirva apenas os melhores interesses da humanidade. No entanto, isso é mais fácil de dizer do que de fazer.» Arlindo OLIVEIRA, Mentes Digitais. A Ciência Redefinindo a Humanidade (The Digital Mind: How Science is Redefining Humanity, 2017). Tradução de Jorge Pereirinha Pires, Lisboa, IST Press, 2017, pp.251-252.

 

Exercício de interpretação

a) Que posição ocupa a inteligência humana na ordem das inteligências, segundo este texto?

b) Sobre a super-inteligência: um valor para o homem ou contra o homem? Porquê?

 

 

Texto 48

 

Yuval Noah HARARI

 

«Los sapiens evolucionaron en la sabana africana hace decenas de miles de años, y sus algoritmos no están precisamente ideados para manejar los flujos de datos del siglo XXI. Podríamos intentar mejorar el sistema humano de procesamiento de datos, pero esto quizá no sea suficiente. Puede que el Internet de Todas las Cosas cree pronto unos flujos de datos tan enormes y rápidos que incluso los algoritmos humanos mejorados no puedan abarcarlos. Cuando el automóvil sustituyó al carruaje tirado por caballos, no mejoramos los caballos: los retiramos. Quizá sea la hora de hacer lo mismo con Homo sapiens.

El dataísmo adopta un enfoque estrictamente funcional de la humanidad, y tasa el valor de las experiencias humanas según su función en los mecanismos de procesamiento de datos. Si desarrollamos un algoritmo que cumpla mejor la misma función, las experiencias humanas perderán su valor. Así, si podemos sustituir no solo a taxistas y a médicos, sino también a abogados, a poetas y a músicos con programas informáticos superiores, por qué habría de preocuparnos que dichos programas no tengan conciencia ni experiencias subjetivas? Si algún humanista empezara a adular el carácter sagrado de la experiencia humana, los dataístas rachazarían esas bobadas sentimentales. «La experiencia que alabas no es más que un algoritmo bioquímico anticuado. Hace setenta mil años, en la sabana africana, este algoritmo era de última generación. Incluso en el siglo XX era vital para el ejército y para la economía. Pero pronto tendremos algoritmos mucho mejores.»

En el clímax de muchas películas de ciencia ficción de Hollywood, los humanos se enfrentan a una flota invasora alienígena, a un ejército de robots rebeldes, o a un superordenador que lo sabe todo y que quiere eliminarlos. La humanidad parece sentenciada. Pero en el último momento, contra toda probabilidad, la humanidad triunfa gracias a algo que los alienígenas, los robots y los superordenadores no podían sospechar y son incapaces de entender: el amor. El héroe, que hasta entonces ha sido fácilmente manipulado por el superordenador y ha sido acribillado por las balas de los robots malignos, recibe de su enamorada la inspiración para hacer algo completamente inesperado que cambia las tornas ante la atónita Matrix. El dataísmo encuentra tales escenarios absolutamente ridículos. «Vamos - reprende a los guionistas de Hollywood -, eso es todo lo que podéis ofrecer? El amor? Y ni siquiera un amor cósmico y platónico, sino la atracción carnal entre los mamíferos? De veras creéís que un superordenador que todo lo sabe o extraterrestres que han conseguido conquistar toda la galaxia se quedarán boquiabiertos ante una descarga hormonal?»

 

Al equiparar las experiencias humanas ao los patrones de datos, el dataísmo socava nuestra principal fuente de autoridad y sentido, y anuncia una tremenda revolución religiosa, como no se ha visto desde el siglo XVIII. En la época de Locke, Hume y Voltaire, los humanistas decían que «Dios es producto de la imaginación humana». Ahora, el dataísmo da a probar a los humanistas su propria medicina y les dice: «Sí, Dios es producto de la imaginación humana, pero la imaginación humana es a su vez producto de algoritmos bioquímicos». En el siglo XVIII, el humanismo dejó de lado a Dios al pasar de una visión del mundo teocéntrica a una visión del mundo homocéntrica. En el siglo XXI, el dataísmo podría dejar de lado a los humanos al pasar de una visión del mundo homocéntrica a visión del mundo datacêntrica.» Yuval Noah HARARI, Homo Deus. Breve historia del mañana. 3ª ed., nova reimp., trad. de Joandomènec Ros, Barcelona, Penguin Random House Grupo Editorial, 2018, pp.422-423.

 

Exercício de interpretação

a) Este texto trata de duas religiões: quais são? Como é que elas se caracterizam quanto às respectivas concepções distintas da humanidade?

b) Por que é que os guionistas de cinema de ficção científica ainda não perceberam bem o dataísmo (latim: data; ou dadaísmo, do pt: dados)?

c) O que pode ganhar ou perder a humanidade com o dataísmo?

 

 

Texto 49

 

Maria Leonor XAVIER

 

«Estamos a viver o primeiro quartel do séc. XXI e este é um tempo em que ressalta o medo do fim da humanidade. Estamos a aprender a lidar com a ideia de fim, e não só já a nível individual, mas a nível colectivo. O medo do fim individual, que é a morte, é uma vivência imemorial do ser humano, que não podia ter deixado de interpelar a filosofia. Esta procurou, frequentemente, fintar o medo da morte, relativizando-a como fim, assimilando-a a uma passagem, a uma porta que ora se abre para o verdadeiro conhecimento (Platão) ora dá acesso à verdadeira felicidade, sem fim nem intermitências (Santo Agostinho), e à visão de Deus face a face (pensamento cristão). Mas a morte do indivíduo não era o fim da espécie humana. No mundo antigo e medieval, acreditava-se que as essências das coisas não se corrompiam com o tempo, eram eternas, mesmo que fosse apenas na mente de Deus, e que os indivíduos de cada espécie poderiam renovar-se infindavelmente no tempo. O existencialismo do séc. XX, ao valorizar extremamente a existência - individual e mortal - em detrimento da essência, não deixou de acusar o medo da morte individual através da recorrência do tópico do desespero perante a finitude da existência. Hoje em dia, sabemos não só que as espécies são mutáveis em virtude da adaptação ao meio (Darwin) como que tudo no firmamento é perecível, incluindo a Terra e as estrelas que também nascem e morrem. O fim do mundo, tal como o conhecemos, já não é uma profecia religiosa, como a alegoria para o fim dos tempos, que encontramos no livro bíblico do Apocalipse; é uma consequência inelutável do conhecimento científico.

O pensamento apocalíptico do início do séc. XXI acusa, sobretudo, o medo da morte colectiva da humanidade. A cultura cinematográfica deste novo princípio de século dá ecos expressivos desse medo e do pensamento que o reflecte. Três exemplos.

2001: “A.I. - Inteligência Artificial”, realizado por Steven Spielberg, a partir de um projecto de Stanley Kubrick, e baseado no conto de Brian Aldiss, Supertoys Last All Summer Long. O filme parte de um projecto científico humano, que é a criação de um robô capaz de amar. O projecto realiza-se e o robô resultante, uma cópia de um menino humano, tornar-se-á o mediador entre a humanidade extinta e as futuras inteligências artificiais. O filme prediz o fim da humanidade bem como a curiosidade que por ela viriam a nutrir as inteligências artificiais que se reconstruiriam no futuro após épocas de glaciação da Terra. É um filme de nostalgia da humanidade, quando esta já é passado, não obstante o regime de escravatura a que os humanos outrora submeteram os robôs (mecas).

2009: “A Estrada”, realizado por John Hillcoat e baseado no romance de Cormac McCarthy, The Road, que foi Pulitzer Prize for Fiction (2006) e James Tait Black Memorial Prize (2006). O filme narra a viagem de um pai com um filho pré-adolescente, estrada fora em direcção ao sul, em busca e em luta pela sobrevivência. É um filme que prediz a morte lenta das sociedades humanas que decorre do aniquilamento da vida na Terra. Restam alguns enlatados e os próprios humanos entram na cadeia alimentar dos humanos, dos mais fortes que submetem os mais fracos pela força das armas. As crianças são uma iguaria muito apreciada. Há, no entanto, um casal que se dedica a resgatá-las para salvar a humanidade, qual contraponto a Adão e Eva, o casal bíblico que conduziu a humanidade à perdição.

2011: “O Cavalo de Turim”, realizado por Béla Tarr e Ágnes Hranitzty. Foi um filme de culto, maximamente estrelado pela crítica cinematográfica na imprensa. Durante cerca de duas horas e meia, o filme narra os cinco dias de uma tempestade, que assola uma solitária e frugal casa camponesa (Europa central? 1º quartel do séc. XX?), onde habitam um pai velho, com marcas de sobrevivente de guerra, uma filha adulta e uma égua, personagens que o filme retrata e fixa em primeiros planos demorados, mas também com grande contenção, respeito e finura, o que decerto contribui para o apuro estético que os críticos geralmente lhe reconhecem. A tempestade não é, porém, uma intempérie passageira: são os dias de um fim de mundo, por oposição aos dias da criação. A tempestade é seca, de vento, pó e folhas, intensificando-se, com um zumbido ensurdecedor, até que a água seca, e, por fim, se faz silêncio e a escuridão cobre a terra. A preto e branco, o filme trata os dias do fim, não como uma catástrofe ilustrada com os efeitos especiais do cinema comercial, mas sim como um processo gradual de desistência inelutável, perante o desaparecimento sucessivo das condições de vida: primeiro a água e depois o oxigénio, e, consequentemente, apagam-se o calor e a luz do fogo.

O pensamento apocalíptico que se exprime de maneiras distintas nestes três filmes entra, porém, em frontal contradição com com os padrões de conforto e bem-estar que as sociedades modernas conseguiram alcançar no final do séc. XX, como nunca antes a humanidade tinha experimentado, e apesar da persistência de desigualdades ainda a reduzir. Há, assim, uma contradição real, não meramente lógica, entre os modernos padrões de bem-estar e o pensamento apocalíptico que assoma na cultura literária e cinematográfica dos nossos dias.

Como se explica este assomar de pensamento apocalíptico nos nossos dias? Pela nossa capacidade de antecipação do risco e de prevenção do perigo. Instinto ou razão? Os filósofos medievais chamavam a essa capacidade de antecipação do risco e de prevenção do risco, nos animais: potência ou faculdade estimativa (aestimativa). Os humanos também possuem essa faculdade, e pode também chamar-se potência ou faculdade cogitativa, i.e., já uma capacidade de pensamento. Podemos, por isso, chamar pensamento estimativo àquele que antevê os riscos do futuro da humanidade. É, no âmbito do pensamento estimativo, que surgem todas as expressões de pensamento apocalíptico - literárias, cinematográficas, ... - que exprimem os medos da humanidade perante o futuro. Também cabe ao pensar filosófico uma incursão no pensamento estimativo, porque não pode ser estranho à filosofia o interesse pelo futuro da humanidade. A questão do futuro da humanidade é mesmo, a nosso ver, a grande questão de teor filosófico que enfrenta o homem contemporâneo.

Cabendo à filosofia também pensar de modo estimativo, i.e., pensar os riscos, os perigos e as possibilidades do futuro da humanidade, como poderá fazê-lo? Antes de mais, procedendo a um levantamento dos grandes temas e problemas, bem como das respectivas vias de resolução, para uma visão de conjunto. Tentemos um elenco:

A tecnologia nuclear. Por um lado, permite produzir energia para alimentar a indústria e os grandes centros urbanos do mundo moderno. Por outro lado, permite produzir armamento bélico de efeitos devastadores não só para a humanidade como para o equilíbrio da Terra. Mesmo que tal armamento nunca venha a ser usado, coloca-se o problema da manutenção dos equipamentos, não só militares, como das próprias centrais nucleares: temos já o desastre de Chernobyl (1986) para nos advertir do risco. Persiste a pergunta: podemos prescindir da energia nuclear? Não se ouve. Porquê? A energia nuclear não só se tornou um sustentáculo do mundo moderno como se perfila para alguns como solução para substituir os combustíveis fósseis.

As alterações climáticas. O temor mais candente do mundo contemporâneo, no dealbar do séc. XXI, antes da pandemia Covid-19. As alterações em curso resultam de uma civilização cuja produção de riqueza assenta na utilização de combustíveis fósseis, que emitem gases de efeito estufa e, desse modo, aceleram o aquecimento global. O aquecimento global produz o degelo nas regiões polares e o aumento do nível dos oceanos, a inundação de muitas zonas costeiras e alterações climáticas um pouco por todo o globo. Resolver este problema obriga a reduzir o uso de combustíveis fósseis, como o carvão. Por isso, a palavra de ordem tornou-se: descarbonizar a economia.

A poluição. Além do uso industrial de combustíveis fósseis, que são também poluidores, a civilização humana criou o plástico: uma inovação tecnológica do séc. XX que se tornou uma praga da civilização do séc. XXI. A poluição pelo plástico inunda os oceanos; o plástico e os demais resíduos do consumo humano. Com efeito, o sucesso da espécie humana na adaptação ao meio terrestre, que trouxe consigo o aumento da população mundial e a melhoria das condições da vida humana, também fez da humanidade um ímpar produtor de lixo. A solução que se impõe é o tratamento e o reaproveitamento do lixo em larga escala: a reciclagem. Por isso, a palavra de ordem tornou-se: economia circular.

A biodiversidade. O êxito adaptativo da humanidade está a exercer uma forte pressão demográfica sobre a Terra. Essa pressão tem estimulado a biotecnologia a produzir transgénicos (sementes geneticamente modificadas) para suprir as necessidades crescentes de alimentação para a população mundial. A cultura intensiva de transgénicos, a poluição e a redução das áreas de vida selvagem estão a fazer diminuir a biodiversidade. A preocupação com a preservação de recursos naturais sobressai na criação de um cofre de sementes de todo o mundo, o Silo Global de Sementes de Svalbard, inaugurado em 2008, no arquipélago Ártico de Svalbard, no norte da Noruega. Em nome da preservação da biodiversidade, a palavra de ordem tornou-se: economia verde.

A tecnologia digital. Trouxe consigo esse admirável mundo novo de comunicação, chamado «virtual», em que mergulham os humanos durante horas a fio dos seus dias. É o mundo dos fluxos de dados, no qual também todos nós somos dados. É, na verdade, tão real e determinante para a vida humana quanto o mundo físico. E convém não esquecer que depende ainda do mundo físico e de um recurso natural não renovável: o lítio. Por enquanto, o homem ainda o controla, mas, no futuro, será o reino da inteligência artificial. Cresce sob o signo do progresso e é, por isso, inelutável. A palavra de ordem tornou-se: digitalizar a economia.

A pandemia do vírus Sars-Cov-2 (Covid 19). É a primeira vez que temos experiência de uma epidemia global, que nos obriga a usar máscara em qualquer ponto do globo, e que veio surpreender a medicina tão avançada que já temos. Fez renascer o medo das epidemias e de novas pandemias. Provocou por todo o mundo confinamentos das populações, que entraram em contradição com o sustento da economia, ao mesmo tempo que contribuíam para abrandar as alterações climáticas. Em contrapartida, tem estimulado a indústria dos produtos descartáveis (plástico) para os equipamentos de protecção médica, incluindo a produção massiva de máscaras, e, por consequência, tem feito aumentar o lixo não biodegradável. Também tem estimulado o uso massivo da tecnologia digital, e, com ela, o aumento do cibercrime. De qualquer modo, ainda é cedo para avaliarmos as consequências da experiência desta pandemia, quer quanto ao número de vítimas mortais, quer quanto a sequelas na saúde humana, quer quanto aos múltiplos efeitos colaterais. Na ausência de antídoto, as palavras de ordem tornaram-se: usar máscara, higienizar as mãos e manter o distanciamento físico. Por temporárias que sejam estas medidas, ainda estão por avaliar os efeitos de médio e longo prazo que tais medidas terão nos comportamentos humanos e nas relações inter-pessoais.

Novos capítulos da ética. Nós já tínhamos a ética clássica das virtudes, que é uma ética do ordenamento das forças individuais do ser humano, como as paixões, a vontade e a razão. - Já tínhamos o princípio ético fundamental de regulação das relações humanas, que modera os interesses individuais pela consideração dos interesses do outro, e que se diz de muitas maneiras - «não faças ao outro o que não queres que te façam a ti», «ama o outro como a ti mesmo», «a minha liberdade termina onde começa a do outro», «age de modo que a tua norma se transforme numa lei universal», «faz o que é útil a todos», ... - e que visa um ponto de equilíbrio entre o extremo egoísmo e o altruísmo extremado na auto-negação. - Mas agora o progresso da biotecnologia e a sua aplicação à medicina abriu um novo horizonte de possibilidades de escolha e poder sobre a vida humana, que solicita um novo capítulo: a bioética, ou ética para as ciências da vida. - Também o ritmo da mudança se tornou tão acelerado e premente que solicita um novo capítulo de ética intergeracional, para sublinhar a responsabilidade das gerações do presente relativamente às gerações do futuro, para além da responsabilidade das gerações mais jovens relativamente aos seniores. - Por sua vez, a ocupação avassaladora da Terra pela civilização humana obriga a reequacionar a relação entre os seres humanos e os animais, num capítulo de ética animal, bem como a estender o dever e o cuidado éticos ao ambiente da vida humana e animal, e à própria Terra, num capítulo de ética ambiental e da Terra. - Por fim, há que acrescentar um capítulo emergente de ética para os robôs, em virtude da sua autonomia crescente, para regular as suas responsabilidades num mundo ainda predominantemente humano.

 

Muitos são os desafios para o ser humano no tempo presente. É desafiante viver no tempo em que vivemos. Na verdade, os problemas que enfrenta hoje a humanidade: nenhuma liderança carismática os resolverá; nenhuma ideologia bem diferenciada; nem o vencimento em absoluto de alguma das causas ou palavras de ordem elencadas; nem sequer a vitória unilateral de qualquer dos partidos que se afrontam na cena do pensamento estimativo - o partido do progresso da tecnologia, até à subsunção da natureza, e o partido do retorno à natureza, até à renúncia à civilização. Só uma visão de conjunto, contemplando todas as interdependências e contradições internas, pode ajudar a discernir o essencial.» Maria Leonor XAVIER, “Em Estado de Emergência: Antes da Pandemia”, Nova Águia. Revista de Cultura para o Século XXI, nº27 (1º Semestre, 2021), pp.207-210.

 

Exercício de interpretação

a) Qual é a questão filosófica que ressalta, neste texto, como dominante no mundo contemporâneo?

b) Este texto trata de 2 tipos de pensamento, apocalíptico e estimativo: como se distinguem e se relacionam entre si?

c) Como resolver os problemas do mundo presente: pelo progresso da tecnologia ou pelo regresso à natureza?

d) Qual a importância de uma visão de conjunto para a resolução dos problemas do nosso mundo?

 

 

3. Três questões sobre a filosofia

 

3.1. A filosofia sem ou com história?

 

Texto 50

 

Georg Wilhelm Friedrich HEGEL

 

«O que a História da Filosofia nos expõe é a série dos espíritos nobres, a galeria dos heróis da razão pensante que, em virtude dessa razão, penetraram na essência das coisas, da Natureza e do espírito, na essência de Deus, e elaboraram para nós o tesouro supremo, o tesouro do conhecimento de razão.

Os eventos e acções desta História são, por isso, simultaneamente, de uma espécie em que, no seu conteúdo e teor, não entra tanto a personalidade e o carácter individual – como, pelo contrário, [acontece] na História política, em que o indivíduo, segundo a particularidade do seu natural, do seu génio, das suas paixões, da energia ou da fraqueza do seu carácter (em geral, segundo aquilo pelo que ele é este indivíduo), é o sujeito dos actos e dos eventos –, mas em que aqui, antes, as produções são tanto mais excelentes quanto menos a imputação e o mérito cabem ao indivíduo particular, quanto mais, pelo contrário, elas pertencem ao pensar livre, ao carácter universal do homem como homem, quanto mais este próprio pensar desprovido de peculiaridade é o próprio sujeito que produz.

[21] Estes actos do pensar parecem ser, antes do mais, enquanto históricos, uma coisa do passado, e residirem para além da nossa realidade. De facto, porém, aquilo que nós somos, somo-lo, em simultâneo, historicamente, ou, mais exactamente: assim como, naquilo que se acha nesta região, na História do pensar, o passado é apenas um dos aspectos, assim também, naquilo que nós somos, o imperecível comunitário se prende inseparavelmente com o que nós historicamente somos.

A posse de racionalidade autoconsciente que nos pertence, [que pertence] ao mundo actual, não surgiu imediatamente e não cresceu apenas do solo do presente, mas é próprio dela ser nele, essencialmente, uma herança e, mais precisamente, o resultado do trabalho e, decerto, do trabalho de todas as gerações precedentes do género humano.

Assim como as artes da vida exterior, a massa de meios e de destrezas, as instituições e hábitos do ser-em-conjunto [Zusammensein] societal e político são um resultado da reflexão, da invenção, das precisões, da carência e da infelicidade, do querer e do consumar da história que precede o nosso presente, assim também aquilo que nós somos na ciência (e, mais precisamente, na filosofia) se deve igualmente à tradição que enlaça tudo o que é passageiro, e que portanto passou, como uma cadeia sagrada (como Herder lhe chamou), e que nos conserva e transmitiu o que os antepassados avançaram.

Esta tradição não é, porém, apenas uma dona-de-casa que apenas guarda fielmente o recebido e o transmite assim intransformadamente aos sucessores. Ela não é uma estátua de pedra imovida, mas está viva e dilata-se como uma corrente poderosa que engrossa tanto mais quanto para longe avançou a sua origem.» G. W. F. HEGEL, Introdução às Lições sobre História da Filosofia. Tradução de José Barata-Moura, Porto, Porto Editora, 1995, pp.45-47.

 

Exercício de interpretação

a) O que é que visa a “razão pensante”, neste texto?

b) O que é que distingue a história da filosofia da história política?

c) A filosofia é uma expressão do indivíduo?

d) O que é que caracteriza a “racionalidade autoconsciente” do homem, segundo este texto?

e) De entre os seguintes conceitos, qual é aquele que elege como principal neste texto: história da filosofia, racionalidade, tradição. Caracterize o conceito escolhido.

 

 

Texto 51

 

Wilhelm DILTHEY

 

«Tanto em Sócrates como nos primeiros diálogos de Platão a reflexão filosófica estendia-se a todo o domínio do saber, em oposição consciente com a sua limitação ao conhecimento da realidade. Abarcava ao mesmo tempo a determinação dos valores, as normas e os fins. Uma surpreendente profundidade de sentido existe nesta interpretação: a filosofia é a consideração que eleva toda a actividade humana à consciência, isto é, ao saber universalmente válido. É a auto-reflexão do espírito em forma de pensar conceitual. A actividade do guerreiro, do estadista, do poeta ou do religioso só pode aperfeiçoar-se quando o saber dessas actividades dirige a prática. E como toda a actividade requer uma determinação teleológica, e o fim último, não obstante, reside na eudemonia, o saber para a eudemonia, para as suas finalidades e meios é o mais forte. E não há força de instintos e paixões sombrias que possa impor-se quando o saber ensina que estes poderes obscuros poderiam inibir a eudemonia. Só o império do saber pode elevar o indivíduo à liberdade e a sociedade à sua própria eudemonia. Sobre a base deste conceito socrático da filosofia, os diálogos socráticos de Platão empreenderam uma solução dos problemas da vida. Precisamente porque a vida com o seu impulso para a eudemonia, com o seu esforço próprio das virtudes em que aquela se realiza, não podia ser elevada a saber universalmente válido, estes diálogos tiveram que terminar negativamente: a polémica na escola socrática não tinha solução. Com sentido profundo e exactidão a Apologia platónica capta na pessoa de Sócrates duas coisas: como encara o problema da validade geral do saber e como não obstante o não-saber é o seu resultado. Este conceito da filosofia, segundo o qual ela aspira a elevar ao saber o ser, valores, bens, fins, virtudes, e tem por objecto o verdadeiro, o belo e o bom, é o primeiro resultado da reflexão da filosofia sobre si mesma; um efeito enorme partia dela, e o núcleo do verdadeiro conceito essencial da filosofia estava contido nela.

O conceito socrático-platónico da filosofia influi na classificação de Aristóteles. Divide a filosofia na ciência teorética, poética e prática. É teorética quando o seu princípio e o seu fim é o conhecimento; é poética quando o seu princípio reside na faculdade artística, e o seu fim na obra criada; prática, quando o seu princípio é a vontade e o seu fim a acção. A poética não só abarca a teoria da arte como todo o saber de índole técnica que tem a sua finalidade não na energia da pessoa mas na composição de uma obra exterior.» Wilhelm DILTHEY, Essência da Filosofia. 3ª ed., trad. de Manuel Frazão, Lisboa, Editorial Presença, 1984, pp.27-28.

 

Exercício de interpretação

a) Caracterize o conceito socrático-platónico de filosofia, segundo W. Dilthey.

b) O que é a “eudemonia”?

c) O que é a Apologia platónica?

d) Por que é que o não-saber é o resultado do problema da validade universal do saber para Sócrates, de acordo com este texto?

e) Este texto apresenta uma divisão da filosofia: quem a propõe e qual é?

f) Como é que o conceito socrático-platónico de filosofia influi na divisão apresentada?

 

 

Texto 52

 

Martial GUEROULT

 

«Por um lado, cada filosofia, pela certeza que ela possui de trazer toda a verdade possível, pretende elevar-se por sua conta acima da história e parar o seu curso. Por outro lado, a história da filosofia, que é na realidade a história das filosofias, arruina cada uma delas ao rejeitar a sua pretensão à verdade, e ao convertê-las em eventos temporais.» Martial GUEROULT, Philosophie de l’histoire de la philosophie. Paris, Aubier Montaigne, 1979, p.40, (Trad. nossa).

 

«Para que seja possível a afirmação da realidade das doutrinas, elas não devem ser «reprodutoras» de um real que lhes é estranho. Ora nós constatamos que elas não o são de facto. Podemos, portanto, afirmar que é erigindo a priori e sem crítica, como condição de possibilidade das doutrinas, o seu carácter de cópia, de «reprodução» dum original, que o senso comum foi conduzido por aí a retirar-lhes realidade, precisamente ao impor-lhes uma condição que nunca é realizada de facto, porque, sem dúvida, nunca será realizável de direito.» Ibid., pp.92-93.

 

«Uma observação do processo de explicação filosófica estabelece [...] que o objecto do pensamento filosofante é o produto da acção deste pensamento, e que a mesma acção erige este produto como realidade original, anterior ao pensamento e à sua actividade. [...] os sistemas não são órgãos de intelecção explicativa de um real, mas produtos da actividade filosofante, produtos que são em si mesmos, cada um deles, «realidades» (des «réels»).

[...]

Realidades singulares não se contradizem, enquanto que verdades discordantes sobre um mesmo original são incompatíveis e destroem-se irremediavelmente.» Ibid., pp.228-229, 232.

 

«Eles [os sistemas] valem, como pretendem, de uma maneira exclusiva e absoluta, são verdades totais e não parciais, mas cada um na sua esfera. Ora esta absolutidade (absoluité) no interior de uma esfera própria não é possível senão porque não se trata, para cada um deles, de reflectir uma realidade que lhe é exterior, mas de constituir cada um deles uma realidade que lhe é própria e interior.» Ibid., p.225.

 

«O interesse da história da filosofia é muito maior do que o da história das ciências, pois, com aquela, trata-se bem menos de erros comprovados do que de soluções possíveis. Enquanto os problemas da ciência do passado (sinónimo de ciência ultrapassada) estão, na sua maior parte, resolvidos ou abolidos, os da filosofia passada aguardam sempre por serem resolvidos.» Ibid., p.56.

 

Exercício de interpretação

a) Há história da filosofia ou história das filosofias, segundo este texto?

b) Em que sentido são reais e verdadeiras as diversas filosofias?

c) Como difere a história da filosofia, da história da ciência?

 

 

Texto 53

 

Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI

 

«Muitos problemas urgem sob os olhos alucinados de um velho que veria confrontarem-se todas as espécies de conceitos filosóficos e de personagens conceituais. E de início os conceitos são e permanecem assinados: substância de Aristóteles, cogito de Descartes, mônada de Leibniz, condição de Kant, potência de Schelling, duração de Bergson... Mas também alguns exigem uma palavra extraordinária, às vezes bárbara ou chocante, que deve designá-los, ao passo que outros se contentam com uma palavra corrente muito comum, que se enche de harmônicos tão longínquos que podem passar despercebidos a um ouvido não filosófico. Alguns solicitam arcaísmos, outros neologismos, atravessados por exercícios etimológicos quase loucos: a etimologia como atletismo propriamente filosófico. Deve haver em cada caso uma estranha necessidade destas palavras e de sua escolha, como elemento do estilo. O batismo do conceito solicita um gosto propriamente filosófico que procede com violência ou com insinuação, e que constitui na língua uma língua da filosofia, não somente um vocabulário, mas uma sintaxe que atinge o sublime ou uma grande beleza. Ora, apesar de datados, assinados e batizados, os conceitos têm sua maneira de não morrer, e todavia são submetidos a exigências de renovação, de substituição, de mutação, que dão à filosofia uma história e também uma geografia agitadas, das quais cada momento, cada lugar, se conservam, mas no tempo, e passam, mas fora do tempo. Se os conceitos não param de mudar, podemos perguntar: qual unidade resta para as filosofias? É a mesma coisa para as ciências, para as artes, que não procedem por conceitos? E quanto à história dessas três disciplinas? Se a filosofia é essa criação contínua de conceitos, perguntar-se-á evidentemente o que é um conceito como Idéia filosófica, mas também em que consistem as outras Idéias criadoras que não são conceitos, que pertencem às ciências e às artes, que têm sua própria história e seu próprio devir, e suas próprias relações variáveis entre elas e com a filosofia. A exclusividade da criação de conceitos assegura à filosofia uma função, mas não lhe dá nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar e de criar, outros modos de ideação que não têm de passar por conceitos, como o pensamento científico. E retornaremos sempre à questão de saber para que serve esta atividade de criar conceitos, em sua diferença em relação às atividades científica ou artística: por que é necessário criar conceitos, e sempre novos conceitos, por qual necessidade, para qual uso? Para fazer o quê? A resposta segundo a qual a grandeza da filosofia estaria justamente em não servir para nada é um coquetismo que não tem graça nem mesmo para os jovens. Em todo caso, não tivemos jamais um problema concernente à morte da metafísica ou à superação da filosofia: são disparates inúteis e penosos. Fala-se hoje da falência dos sistemas, quando é apenas o conceito de sistema que mudou. Se há lugar e tempo para a criação dos conceitos, a essa operação de criação sempre se chamará filosofia, ou não se distinguirá da filosofia, mesmo se lhe for dado um outro nome.» Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI, O que é a Filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz, S. Paulo, Editora !34, 1992, pp.16-17.

 

Exercício de interpretação

a) Os conceitos filosóficos têm assinatura? Em que sentido?

b) Os conceitos filosóficos têm baptismo? Em que sentido?

c) O que é que acontece aos conceitos filosóficos, depois de criados?

  

 

Texto 54

 

Joaquim CERQUEIRA GONÇALVES

 

«Uma filosofia da razão histórica

Um cepticismo sadio: «Não dominamos nem o princípio nem o fim do conhecimento, ele está necessariamente em aberto. Todas as determinações são temporárias e destinadas a passos futuros.» FM 78/79; «Como nós não sabemos tudo, há que duvidar do que sabemos.» FM 82/83

A razão não se faz sem tempo: «Nós pensamos como se …, porque pensamos num processo e o processo ultrapassa-nos.» FM 82/83; «A razão não existe, faz‑se.» FM 87/88; «A razão não é intemporal. Pelo menos, a razão medieval, apoiada pela ideia de infinito, era uma razão aberta.» FM 98/99

A razão é vida: «A razão é vida, que se vai manifestando historicamente nas relações humanas.» FM 82/83; «A razão é um apelo da vida.» FM 82/83; «A razão, faculdade pura, não existe.» FM 83/84

A razão não é sem cultura: «A razão, em grande parte, é a organização da cultura.» FM 86/87; «Nós não temos a razão vazia; nós temos a razão cheia de tradição.» FM 86/87; «Há tantas razões quantas as culturas, quantos os mundos que organizamos.» FM 86/87

A razão não é substância, é organização: «A razão não é substantivo, mas adjectivo: a realidade é que é racional; a razão não existe.» FM 86/87; «Razão implica organização, coerência entre as partes; o que é racional, não é avulso.» FM 86/87; «A razão é um processo que se vai organizando na relação das razões finitas.» FM 86/87; «As coisas são racionais, quando estão relacionadas umas com as outras.» FM 86/87; «O conhecimento é a procura da mediação entre as coisas que não estão imediatamente articuladas.» FM 98/99

O centramento filosófico da razão: «A história da filosofia, porventura, nada mais é do que uma prolongada tentativa de definir e até de elaborar a razão.» FM 85/86; «Porquê o nosso fascínio pela razão? Porque estamos ligados a tudo; por isso, acreditamos naturalmente que tudo tem sentido.» FM 86/87; «Os critérios da razão podem ser ou mentais ou transcendentes (exs.: o Bem, em Platão; Deus, no cristianismo).» FM 86/87

A razão é histórica: «A historicidade da razão significa relativismo? A nossa razão não é relativa, mas histórica, participada.» FM 86/87; «A razão é englobante e histórica.» FM 86/87; «A ideia de progresso é outra característica inerente da razão, embora o progresso da razão não seja linear, estando sujeito a regressões.» FM 86/87; «A razão constrói‑se.» FM 86/87; «A razão é histórica, não pode quedar‑se em alguma das suas expressões.» FM 87/88

Histórias da razão contra a historicidade da razão: «A doutrina da dupla verdade, no séc.XIII, não atende à historicidade da razão.» FM 82/83; «A dupla verdade traduz a dificuldade de admitir uma verdade que é vida e que é histórica.» FM 86/87; «A história da razão, no mundo ocidental, esteve estreitamente associada à laicização da razão, que teve tendência para anular a própria história.» FM 83/84

Tendências cruzadas acerca da razão: «Toda a razão tende a ser universal, mas cada grupo tende a apossar‑se dela.» FM 86/87; «Ou se alarga o sentido de razão ou ficamos com a oposição do racional ao irracional.» FM 86/87;

A razão em relação com o amor: «O amor cria a razão, a hierarquização axiológica.» FM 86/87; «A razão deve limitar‑se por amor; quando assim se limita, não se limita.» FM 86/87

A razão admite diferenças: «Há três considerações diferentes de razão: a razão científica, a razão dialéctica e a razão mística. A primeira é horizontal, a segunda é em espiral, e a terceira é vertical.» FM 86/87

 

Historicidade da filosofia

Historicidade, uma propriedade essencial da filosofia: «A historicidade é co‑natural à filosofia.» FM 82/83; «Filosofia é história da filosofia.» FM 82/83; «Não há filosofia de direito; há filosofia de facto. A filosofia não é aquilo que ela deve ser, mas aquilo que ela foi e aquilo que ela é capaz de ser.» FM 82/83; «Se a realidade é mutável, a filosofia é mutável.» FM 85/86; «A historicidade faz parte da definição de filosofia.» FM 86/87

A filosofia em oposição à ciência, quanto à respectiva historicidade: «Se a historicidade é inerente à filosofia, tal não é óbvio para a ciência, embora seja mais fácil fazer uma história da ciência. A filosofia não prescinde do passado; a ciência vive renegando o passado.» FM 82/83; «Enquanto o cientista é muitas vezes insensível à historicidade, esta é essencial ao filósofo.» FM 83/84; «A historicidade é constitutiva da filosofia, mas talvez não seja, da ciência.» FM 83/84; «À filosofia é intrínseca a ideia de tradição, de historicidade; à ciência, não.» FM 85/86; «Todo o saber é insensível à história, o que não significa que o saber não seja histórico.» FM 86/87; «Em ciência, um paradigma substitui outro paradigma; em filosofia e nas ciências humanas, não há substituição, tudo é integrado, nada é esquecido.» FM 98/99

A questão do reconhecimento da historicidade da filosofia: «Por que é que não se discutiu durante tanto tempo o problema da historicidade da filosofia? Por causa do prestígio da filosofia grega, aliás pouco sensível à história.» FM 86/87; «A filosofia é considerada histórica ou não, consoante o sentido do nosso agir e conhecer.» FM 86/87; «Sem a vivência do tempo, da nossa unidade e da nossa diferença, não entendemos a história da filosofia, nem nos apercebemos de que a filosofia é estruturalmente histórica.» FM 98/99

 

História da filosofia, mas não cronológica

A filosofia tem o seu próprio tempo: «A filosofia cria o seu próprio tempo, a sua própria história.» FM 78/79; «Fazer história da filosofia é criar um tempo filosófico» FM 82/83; «Fazer filosofia é criar tempo, é encontrar o passado e apontar para o futuro.» FM 98/99

A história cronológica da filosofia não é a história do tempo próprio da filosofia: «Uma história cronológica da filosofia pode ter uma configuração completamente diferente de uma história em que a filosofia cria o seu próprio tempo.» FM 78/79; «A seriação cronológica dos filósofos não corresponde, não coincide com as respectivas inter-influências.» FM 82/83; «Em filosofia, não há anacronismo.» FM 98/99

A história da filosofia, como hermenêutica: «A história da filosofia é depoimento sobre a idêntica e perene filosofia.» FM 82/83; «É um facto que a história da filosofia tem sido um comentário à filosofia grega.» FM 82/83; «É um facto que a filosofia medieval é uma exegese da filosofia antiga.» FM 82/83

Em questão, os critérios de organização para uma história não cronológica da filosofia: «Em filosofia, é discutível o modelo heideggeriano de progresso, segundo o qual o progresso está no desvelamento do ser encoberto pela ciência; é talvez preferível o critério da grandeza do mundo construído pelo filósofo: quanto maior é o mundo tanto mais progressivo ele é.» FM 83/84

Exemplos: «O mundo de Parménides é muito mais excessivo do que o de muitos filósofos contemporâneos; estes passam depressa.» FM 83/84; «Por ser uma época de excesso, a Idade Média estava fadada para ser uma época de interpelação.» FM 86/87» Maria Leonor XAVIER, “Ditos Filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves”, in AAVV, Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves. Organização do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.80‑82.

 

Exercício de interpretação

a) Que conceito de razão se configura neste texto, i.e., quais são os seus atributos?

b) Como é que o atributo da historicidade determina esse conceito de razão?

c) A filosofia e a ciência são históricas da mesma forma ou diferem quanto à respectiva historicidade?

d) A história da filosofia já está feita cronologicamente ou é uma tarefa filosófica incessante?

e) Que critérios podem presidir a uma organização filosófica da história da filosofia, segundo este texto?

 

 

 

3.2. A filosofia: una ou múltipla?

 

3.2.1. A pluralidade de disciplinas

 

Texto 55

 

John LOCKE

 

«Da divisão das ciências

1. Tudo o que pode cair dentro do âmbito do entendimento humano, é, primeiro, a natureza das coisas como são em si mesmas, as suas relações e as suas formas de operar; ou, segundo, aquilo que o próprio homem deve fazer como agente racional e dotado de vontades para alcançar uma finalidade, especialmente a felicidade; ou, ainda, terceiro, as maneiras e meios pelos quais o conhecimento dessas coisas é atingido e comunicado; parece-me, pois, que a ciência pode dividir-se com propriedade nestes três ramos:

2. Primeiro: O conhecimento das coisas, como elas são nos seus próprios seres, assim como na sua constituição, propriedades e operações. Por coisas quero significar não só a matéria e o corpo, mas os espíritos também, que têm as suas naturezas próprias, suas constituições e operações, tal como os corpos. A isto, num sentido mais amplo da palavra, chamo Φυσική ou filosofia natural. A finalidade desta é a pura verdade especulativa, e tudo quanto a este respeito possa enriquecer a mente humana fica compreendido dentro deste ramo, quer seja o próprio Deus, ou anjos, os espíritos, corpos ou qualquer dos seus atributos, como o número, a forma, etc.

3. Segundo: Πρακτική, a habilidade de aplicar bem as nossas próprias potências e acções, em actos com o fim de alcançar coisas boas e úteis. O mais importante, sob este título, é a ética, que consiste na procura daquelas regras e medidas das acções humanas que conduzem à felicidade, e os meios de pôr em prática essas regras. A finalidade desta classe da ciência não é a pura especulação e o conhecimento da verdade, mas sim a justiça e uma conduta de acordo com ela.

4. Terceiro: o terceiro ramo pode chamar-se Σημειωτική ou doutrina dos sinais e, como as palavras constituem a sua parte mais útil, também pode chamar-se com suficiente propriedade Λογική, lógica. O assunto desta ciência consiste em considerar a natureza dos sinais de que o espírito faz uso para a compreensão das coisas, ou para comunicar os seus conhecimentos aos outros. Porque, como entre as coisas em que o espírito medita, não há nenhuma, excepto ele próprio, que seja presente para o conhecimento, é necessário que alguma outra coisa se lhe apresente, como sinal ou representação da coisa que considera, e essas coisas são as ideias. A cena das ideias que constitui os pensamentos de um homem não pode exibir-se de uma maneira imediata à vista de outro homem, nem guardar-se em nenhuma parte que não seja na memória, que não é um armazém muito seguro, e por isso, para comunicar os nossos pensamentos uns aos outros, bem como registá-los para nosso próprio uso, os sinais das nossas ideias também são necessários; aqueles que os homens acharam mais convenientes e dos quais, portanto, fazem mais uso são os sons articulados. Por conseguinte, a consideração das ideias e palavras como grandes instrumentos do conhecimento constitui uma parte nada depreciável da contemplação de quem pretende ver em toda a sua extensão o conhecimento humano. [...].

5. Esta parece-me ser a primeira e mais geral e a mais natural divisão dos objectos do nosso entendimento, porque um homem não pode aplicar os seus pensamentos em nada, excepto na contemplação das próprias coisas, para descobrir a verdade; ou pode aplicá-los nas coisas que estão em seu poder, que são as suas próprias acções, para conseguir os seus próprios fins; ou nos sinais de que o espírito faz uso, tanto num como noutro e sobre a devida ordem deles para a sua mais clara informação.» John LOCKE, Ensaio sobre o Entendimento Humano IV, 21. Coordenação da tradução por Eduardo Abranches de Soveral, 5ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, vol. II, pp.[999]-[1001].

 

Exercício de interpretação:

a) Como é que este texto fundamenta a tríplice divisão das ciências?

b) Que conceito aqui se apresenta de filosofia natural? Trata-se de uma ou de várias disciplinas?

c) Que conceito aqui se apresenta de filosofia prática? Trata-se de uma ou de várias disciplinas?

d) Que conceito aqui se apresenta de lógica? Trata-se de uma ou de várias disciplinas?

e) Que relação tem esta divisão das ciências com a filosofia?

 

 

Texto 56

 

Wolfgang STEGMÜLLER

 

«Se, diante da multiplicidade de opiniões filosóficas divergentes, debalde procurássemos identificar características de conteúdo comum que distinguissem a filosofia das correntes filosóficas do passado, é, contudo, possível assinalar duas características formais da situação filosófica actual que a distinguem de todas as situações anteriores.

Como primeira característica pode-se mencionar o processo da diferenciação funcional da filosofia: originalmente a filosofia reunia em si funções muito diversas. Desde as suas primeiras origens era considerada, antes de tudo, como ciência, que tinha como objetivo o conhecimento conceitual da realidade. Mas não era, de modo algum, apenas isto. Além disso, ela cumpria uma função semelhante à da religião, no sentido de que, independentemente de qualquer revelação histórica, ela procurava proporcionar um conhecimento sobre as realidades supremas, conhecimento este que dava ao filósofo consolo e segurança ou, como no caso da filosofia escolástica, procurava um fundamento racional adicional para a fé religiosa ou, finalmente, no sentido de que ela devia fornecer um substitutivo religioso para os homens que haviam perdido a fé. Frequentemente estava no primeiro plano do interesse também a função ética da filosofia, como doutrina de uma vida correta. Com a formação, desenvolvimento e crescente divisão das diversas ciências, resultou para a filosofia, como disciplina puramente teórica, a outra função de explicar os fundamentos das diversas ciências e harmonizar os resultados das pesquisas destas com os seus próprios resultados.

Nas doutrinas filosóficas antigas todos esses fatores estavam, via de regra, unidos e somente em certos casos o centro de gravidade era deslocado para um ou outro fator. Entretanto, na filosofia deste século observamos uma crescente autonomização dessas funções heterogéneas da filosofia. As obras filosóficas representam, na maioria dos casos, apenas um desses aspectos, mais ou menos puro.

[…].

Paralelamente a esta diferenciação, existe um segundo aspecto característico, isto é, um processo de afastamento recíproco e de crescente falta de comunicação entre os filósofos das diversas correntes. É absolutamente necessário ter em mente esse estado de coisas. Isso implica em nada menos que o fato de que a própria palavra “filosofia” se tornou um termo ambíguo.» Wolfgang STEGMÜLLER, A Filosofia Contemporânea. Introdução crítica. Vol. 1, trad. port. (br.), São Paulo, EPU / Ed. da Universidade de São Paulo, 1977, pp.10-12.

 

Exercício de interpretação

a) Como é que este texto equaciona as relações da filosofia com a ciência e a religião, quer na origem e quer na situação actual da filosofia?

b) É possível encontrar características comuns de conteúdo ou de forma na filosofia contemporânea, segundo este texto?

c) Como é que este texto entende a diferença entre as filosofias do passado e a situação actual da filosofia?

d) O que significa “o processo de diferenciação funcional da filosofia”, segundo este texto?

e) O que é que resulta do “processo de afastamento recíproco e de crescente falta de comunicação entre os filósofos das diversas correntes”?

 

 

Texto 57

 

Maria Leonor XAVIER

 

«Quando há dualidades irresolúveis ou irredutíveis, a solução de unidade é habitualmente a da ordenação que estabelece o primado de um lado sobre o outro. Assim fez Aristóteles, ao ordenar à filosofia teorética a filosofia prática sob a filosofia teorética, assumindo a superioridade daquela.

Uma questão que a cultura científica contemporânea coloca à filosofia é a da redução ou ordenação da dualidade de ciências duras (exactas, naturais e tecnológicas) e moles (sociais e humanas), herdeira e continuadora da dualidade de ciências da natureza e do espírito (sécs. XIX e XX). A sociedade tem debatido esta questão, reflectindo-se nas políticas públicas de educação e ciência, que têm privilegiado as ciências “duras” em detrimento das ciências humanas.

Há, no entanto, uma questão antiga, que remonta pelo menos aos clássicos Platão e Aristóteles, e que emerge enfaticamente em Kant – que perguntou por que é que a metafísica não pode ser uma ciência? – e que pode obter agora a seguinte formulação: por que é que a filosofia não é uma ciência dura?

A filosofia não é nem pode ser uma ciência dura, não por limite ou imperfeição própria, mas porque o seu universo de compreensão não confina com o de alguma ciência exacta, dada a pluralidade e abrangência dos seus motivos de interesse e reflexão, que vão das ciências às religiões e às artes.

A filosofia tem, pois, de situar-se no meio de uma dualidade irredutível: a objectividade máxima das ciências exactas e a singularidade máxima das obras de arte. Uma vez que a filosofia não pode ignorar tanto a objectividade da ciência quanto a singularidade da arte, ela deve ser simultaneamente objectiva e singular (única, pessoal).

Devido a esta dupla condição, difícil de gerir sem contradição, a filosofia não pode constituir um corpo circunscrito e objectivo de ciência, mas é capaz de constituir um corpo diferenciado de doutrinas, segundo a disseminação dos pontos de vista singulares e situados da razão humana, como atesta, aliás, o curso da sua história.» Maria Leonor XAVIER, “A Filosofia e a sua Pluralidade I: as disciplinas filosóficas”, Nova Águia. Revista de Cultura para o Século XXI, nº17 (1º Semestre, 2016), p.212.

 

Exercício de interpretação:

a) Qual é a oposição mais difícil de superar no panorama actual das ciências?

b) Pode a filosofia ser uma ciência exacta? Porquê?

c) Como é que a filosofia se relaciona com as ciências, as artes e as religiões?

 

 

Texto 58

 

Yuval Noah HARARI

 

«La mayoría de la gente presume que la realidad es o bien objetiva o bien subjetiva, y que no hay una terceira opción. De ahí que cuando se convencen de algo no es solo un sentimiento subjetivo, llegan a la conclusión de que tiene que ser objetivo. Si hay mucha gente que cree en Dios, si el dinero hace que el mundo gire, y si el nacionalismo inicia guerras y construye imperios ..., todo ello no es solo una creencia subjetiva mía. Por lo tanto, Dios, el dinero y las naciones deben de ser realidades objetivas.

Sin embargo, hay un tercer nivel de realidad: el nivel intersubjetivo. Las entidades intersubjetivas dependen de la comunicación entre muchos humanos y no de las creencias y sentimientos de individuos humanos. Muchos de los agentes más importantes de la historia son intersubjetivos. El dinero, por ejemplo, no tiene valor objetivo. No podemos comer, beber ni vestirnos con un billete de un dólar. Pero mientras millones de personas crean en su valor, lo podemos utilizar para comprar comida, bebidas y ropa.» Yuval Noah HARARI, Homo Deus. Breve historia del mañana. 3ª ed., nova reimp., trad. de Joandomènec Ros, Barcelona, Penguin Random House Grupo Editorial, 2018, p.165.

 

«No hay otro animal que pueda medirse con nosotros, no porque carezcan de alma o de mente, sino porque carecen de la imaginación necesaria. Los leones pueden correr, saltar, morder y desgarrar. Pero no pueden abrir una cuenta bancaria o poner un pleito. Y en el siglo XXI, un banquero que sepa poner un pleito es más poderoso que el más feroz de los leones de la sabana.

De la misma manera que separa a los humanos de los demás animales, esta capacidad de crear entidades intersubjetivas separa también las humanidades de las ciencias de la vida. Los historiadores buscan comprender el desarrollo de entidades intersubjetivas como los dioses y las naciones, mientras que los biólogos difícilmente reconocen la existencia de tales cosas. Algunos creen que si pudiéramos descifrar el código genético y cartografar todas y cada una de las neuronas del cerebro, conoceríamos todos los secretos de la humanidad. A fin de cuentas, si los humanos no tienen alma y si los pensamientos, emociones y sensaciones son solo algoritmos bioquímicos, por qué no puede la biología explicar todos los caprichos de las sociedades humanas? Desde esta perspectiva, las cruzadas fueron disputas territoriales modeladas por presiones evolutivas, y los caballeros ingleses que viajaron a Tierra Santa para luchar contra Saladino no eran muy distintos de los lobos que intentan apropiarse del territorio de una jauría vecina.

Las humanidades, en cambio, ponen énfasis en la importancia crucial de entidades intersubjetivas, que no pueden reducirse a hormonas y neuronas. Pensar desde el punto de vista histórico significa adscribir poder real a los contenidos de nuestros relatos imaginarios. Evidentemente, los historiadores no obvian los factores objetivos, como los cambios climáticos y las mutaciones genéticas, pero confieren mucha mayor importancia a los relatos que la gente inventa y en los que cree. Corea del Norte y Corea del Sur son tan diferentes entre sí no porque la gente de Pyongyang tenga genes diferentes a los genes de la gente de Seúl o porque el norte sea más frío y más montañoso. Ello se debe a que el norte está dominado por ficciones muy distintas.

Quizá algún día los descubrimientos en neurobiología nos permitan explicar el comunismo y las cruzadas en términos estrictamente bioquímicos, pero estamos muy lejos de este momento. Durante el siglo XXI es probable que la frontera entre la historia y la biología se desvanezca, no porque descubramos explicaciones biológicas de los acontecimientos históricos, sino más bien porque las ficciones ideológicas reescriban las cadenas de ADN, los interesses políticos y económicos reescriban el clima, y la geografía de montañas y ríos dé paso al ciberespacio. A medida que las ficciones humanas se traduzcan en códigos genéticos y electrónicos, la realidad intersubjetiva engullirá por completo la realidad objetiva, y la biología se fusionará con la historia. En el siglo XXI, la ficción puede, por lo tanto, convertirse en la fuerza más poderosa de la Tierra, sobrepasando incluso a los asteroides caprichosos y a la selección natural. De ahí que si queremos entender nuestro futuro, en absoluto no bastará con decifrar genomas y calcular números. También tenemos que descifrar las ficciones que dan sentido al mundo.» IDEM, Op. cit., pp.172-173.

 

Exercício de interpretação

a) Sobre a realidade, este texto refere-se a vários níveis: quais?

b) O que são entidades intersubjectivas?

c) Como é que este texto entende a diferença e relação entre a biologia e a história?

d) O que é que as humanidades acrescentam às ciências da vida?

e) Há, neste texto, algum sentido de interdisciplinaridade? Explicite a resposta.

 

 

Texto 59

 

António DAMÁSIO

 

«Sim, ando há 20 anos a explicar que sentimentos não são emoções. Mas é extraordinária a resistência. As coisas espantosas que dizem… falam de hearts and minds! Esperem um pouco: hearts and minds? O coração é a emoção, mas querem mesmo dizer coração? E querem mesmo dizer mente sem coração? As confusões são extraordinárias, mas talvez o ponto mais importante é que as emoções são públicas. Quando está contente e se ri, ou quando está triste, quando está irritada, tudo isso aparece na sua máscara. Aparece no rosto e no corpo. Quando se sente irritada ou triste ou alegre, isso aparece unicamente em si. Você é a única pessoa que tem acesso a essa informação no sentido real. É uma experiência privada. Você pode simular a representação pública, mas essa distinção explica em grande parte porque é que as pessoas estão muito mais confortáveis quando falam de emoção: porque é público, porque é observável, enquanto os sentimentos têm de ser observáveis por dentro. Mas não estão de forma alguma fora do campo da ciência. É possível a cada um de nós fazer as observações, fazer o resumo dessas observações que são um campo científico e filosófico a que se chama fenomenologia. Portanto, temos a possibilidade de fazer as nossas próprias observações, partilhá-las com os outros, fazer comparações e fazer descrições o mais completas possível. Não há qualquer limitação do ponto de vista científico. Não há limitação da objectividade com que se pode estudar a subjectividade.» Entrevista por Isabel Lucas, Público (5 de Novembro 2017), p.7.

 

«Os sentimentos são representações do estado da nossa vida, mas representações qualificadas. Um dos problemas que mais me inquietam é essa impossibilidade que as pessoas têm tido de perceber que a inteligência – ou a nossa mente – vai só até certo ponto e a partir daí tem de ter uma qualificação. Essa qualificação aparece em termos de agradável ou desagradável, de bom ou de mau, e é isso que faz a grande distinção entre a inteligência humana no sentido mais completo e a mente humana. À inteligência artificial, por exemplo, falta isso. Infelizmente, as pessoas não se têm dado conta. Sou um adepto da inteligência artificial e tudo o que esse campo de tecnologia e de ciência nos tem trazido, mas é pena que poucas pessoas dentro desse mundo tenham compreendido que a inteligência artificial tal como é compreendida é uma pálida ideia daquilo que é a inteligência humana no seu real. – [Ou seja, o humano, muito por via dos sentimentos, não pode ser replicado artificialmente.] – De certeza que não pode ser nem simulado! Há uma grande diferença entre simulação e duplicação. O que a inteligência artificial faz, e muito bem, é uma simulação, e com capacidades extraordinárias, muito superiores àquelas que temos. A capacidade de inteligência no sentido mais directo e algorítmico que temos hoje em dia em matéria de memória, de estratégias de raciocínio, é extraordinária. Faltam é essas outras qualidades que temos na nossa inteligência e que são absolutamente necessárias e extremamente realistas, porque têm que ver com aquilo que a vida é. Enquanto a vida concebida no sentido da inteligência artificial não tem nada que ver com aquilo que a vida é. A vida é outra coisa.» Entrevista por Isabel Lucas, Público (5 de Novembro 2017), p.6.

 

Exercício de interpretação

a) Explicite a distinção que aqui se faz entre sentimentos e emoções.

b) Explicite a distinção que aqui se faz entre vida e inteligência artificial.

c) Os domínios do subjectivo e do qualitativo são científicos ou extra-científicos?

 

 

 

3.2.2. A pluralidade de correntes filosóficas

 

Texto 60

 

Carlos SILVA

 

PLATONISMO - «Entende-se, em sentido amplo, por corrente filosófica, de pensamento, mesmo que estético, científico, religioso ou outro, que se inspire e herde directamente da figura, da doutrinação ou da obra de Platão. É ainda o “processo de assimilação e de transformação deste pensamento até nós”, como afirma K. Jaspers (Die Grosse Philosophen). Com propriedade tematizou-se o P. só a partir da “palingénese” renascentista e moderna dos clássicos, i.e., tomando como referência a ponderação polémica e o estudo crítico da doutrina e obra de Platão. (…) É no contraponto com o aristotelismo, se se quiser na consciência pictórica tipificada pela “Academia de Atenas” e no contraste simbólico com que Rafael representa Platão “apontando para o céu”, e Aristóteles, “para a Terra”, que começa a constituir matéria de mais explícita opção e caracterização do P. na óptica de uma história da filosofia.

De facto, tendo existido embora vários platonismos, a referência tradicional não tomava o P. preferindo mencionar “Platão”, os “platónicos”, como já faz Aristóteles (Met., A, 1), e se há-de prolongar ao longo da medievalidade. Um outro meio é o de referir os “livros dos platónicos”, como faz Santo Agostinho e se há-de repetir noutros mestres medievais. Finalmente, haveria de se referir o P. por antiaristotelismo, contra-peripatetismo, ou hibridá-lo em fórmulas cristãs como do “socratismo cristão”. Mas, se só com o Renascimento e a Modernidade surge na consciência autonómica da reflexão filosófica o P., como uma tendência ou uma escola de pensamento, não quer dizer que não se tenha vindo a confundir na designação do “racionalismo”, sob a forma de um “idealismo”, ou até de uma “teoria eidética” e de “paradigmas”, como em Lévi-Strauss e já antes na matemática de Cantor.

No entanto, e ainda deste ponto de vista de designação, o P., quer como estudo clássico da filos. platónica, quer como persistência de outros desenvolvimentos reflexivos que, como Platão, empreenderam determinada reflexão, constitui ainda para o nosso século uma referência de entendimento filosófico e cultural irredutível a outras traduções, subsistente como paradigma mesmo de uma cultura filosófica perene. Segundo Whitehead, “a filosofia ocidental toda ela não é mais do que um conjunto de anotações de rodapé ao texto de Platão”.» Carlos SILVA, “Platonismo”, Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. 4, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 1992, cc.238-239.

 

Exercício de interpretação

Tarefas a realizar para a compreensão do texto:

a) Fazer o levantamento dos nomes mencionados e consultar informação biográfica sobre cada um deles.

b) Esclarecer o sentido das expressões no contexto em que são empregues: “palingénese”; “Academia de Atenas”; contra-peripatetismo; “socratismo cristão”; “racionalismo”; “idealismo”; “teoria eidética”; “paradigmas”.

Perguntas de interpretação:

a) Há uma só ou várias acepções de platonismo?

b) Qual o papel dos termos a itálico – história da filosofia, tendência, e paradigma – na análise do tema platonismo segundo Carlos Silva.

 

 

Texto 61

 

Carlos SILVA

 

ARISTOTELISMO - «Entende-se mais como a persistência de uma larga tradição de pensamento (analogamente ao que se passa com o platonismo), do que como um “sistema filosófico” (mais à maneira do sublinhado de variantes da doutrina de determinado pensador, por ex. cartesianismo, hegelianismo, etc.) e, posto que não se vá tão longe quanto B. Russell (A History of Western Philosophy, Londres, 1946), a conceder um valor universal histórico do aristotelismo na “filosofia ocidental”, nem se concorde com a contraposição sistemática e universal que estabelece entre Platão e Aristóteles, deve-se reconhecer, no entanto, que, no fundo, persistente mesmo no chamado “senso comum” e A. espontâneo no realismo ingénuo, se determina uma acepção muito vasta do A. Por essa razão convém circunscrever o A. adjectivando-o de acordo com cada um dos ciclos ou períodos de transmissão, recepção e adaptação. É, assim, costume considerar o A. grego, latino e árabe; também o A. medieval escolástico, o A. renascentista (em particular paduano) e, enfim, os aristotelismos moderno e contemporâneo (mais já na perspectiva dos estudos histórico-críticos, mas ainda de virtualidade da experiência pensante do Estagirita).» Carlos SILVA, “Aristotelismo”, Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. 1, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 1989, cc.408-409.

 

Exercício de interpretação

a) Em que é que se distingue a acepção de aristotelismo aqui admitida da de outros “-ismos” inspirados por filósofos, como o cartesianismo e o hegelianismo?

b) Tendo em conta a adjectivação do aristotelismo, segundo várias épocas e contextos históricos, dê um exemplo de um filósofo aristotélico para cada um dos aristotelismos discriminados.

 

 

Texto 62

 

Simon BLACKBURN

 

CEPTICISMO - «cepticismo (do gr. skepsis, investigação ou questionamento) Embora o cepticismo grego se centrasse no valor da investigação e da formulação de questões, o cepticismo é hoje em dia a negação de que o conhecimento ou sequer a crença racional sejam possíveis, quer quanto a um assunto específico (e.g. a ética), quer quanto a todos os assuntos. O cepticismo nasce classicamente da observação de que os melhores métodos de investigação numa dada área parecem não ser susceptíveis de nos proporcionar um contacto com a verdade (e.g., há um hiato entre a aparência e a realidade), e menciona frequentemente os juízos contraditórios que os nossos métodos de investigação produzem, com o objectivo de mostrar que as questões acerca da verdade são indecidíveis. No pensamento clássico, os vários exemplos deste conflito foram sistematizados nos dez tropos de Enesidemo. O cepticismo de Pirro e da nova Academia era um sistema de argumentação e de ética que se opunha ao dogmatismo e, em particular, à tendência sistematizadora dos Estóicos. Tal como nos chegou, especialmente nos fragmentos de Sexto Empírico, o seu método consistia tipicamente em apresentar razões que levassem a concluir que uma questão era indecidível (os cépticos dedicaram-se em particular a destruir a ideia estóica de que algumas verdades eram acessíveis por apreensão directa ou catalepsia). Consequentemente, o céptico recomenda a epochê ou suspensão do juízo, advogando em seguida um modo de vida cujo objectivo era a ataraxia, i.e., a tranquilidade resultante dessa suspensão do juízo. Este processo é frequentemente ridicularizado, por exemplo nas histórias relatadas por Diógenes Laércio, segundo as quais Pirro teve de ser impedido de caminhar em direcção aos precipícios, de deixar pessoas atoladas em pântanos e coisas do género, uma vez que o seu método o fazia duvidar de que os precipícios ou os pântanos existissem (estas lendas podem ter derivado de uma má interpretação de Aristóteles, Metafísica Γ, 1008 b, que argumenta que, em virtude de os cépticos não fazerem essas coisas, aceitam de facto as doutrinas que fingem rejeitar). Na verdade, os cépticos antigos permitiam a confiança nos “fenómenos”, reservando o seu cepticismo para as crenças mais teóricas – embora nem sempre seja claro o que eram para eles os fenómenos.» Simon BLACKBURN, “cepticismo”, Dicionário de Filosofia. Tradução de Desidério Murcho, Lisboa, Gradiva, 1997, p.63.

 

Exercício de interpretação

Tarefas a realizar para a compreensão do texto:

a) Fazer o levantamento dos nomes mencionados e consultar informação biográfica sobre cada um deles.

b) Fazer o levantamento dos termos gregos transliterados, e significados associados.

c) Esclarecer o sentido das expressões no contexto em que são empregues: “dez tropos de Enesidemo”; “nova Academia”; “dogmatismo”; “Estóicos”.

d) Esclarecer o sentido do período entre (): “(estas lendas podem ter derivado de uma má interpretação de Aristóteles, Metafísica Γ, 1008 b, que argumenta que, em virtude de os cépticos não fazerem essas coisas, aceitam de facto as doutrinas que fingem rejeitar)”.

d) Quais são os opostos do cepticismo neste texto?

d) Como é que este texto entende a diferença entre o cepticismo antigo e o actual?

 

 

Texto 63

 

Pedro ALVES

 

FENOMENOLOGIA - «A fundamentação da Lógica e da Matemática na Psicologia era um tópico recorrente, ao qual Husserl pagara já o seu tributo na sua Philosophie der Arithmetik, de 1891. Por outro lado, a crítica do Psicologismo, tanto do seu próprio como do alheio, objectivo central dos Prolegomena, de 1900, fora já antes encetada por Frege. A oposição fregeana entre a objectividade do pensamento (der Gedanke) e a subjectividade da representação (die Vorstellung), permitia separar, de entrada, com total nitidez, os terrenos de ciências como a Lógica e a Psicologia. Esta separação era apenas um dos aspectos da luta teórica contra o relativismo céptico, que Husserl também fez sua […]. Mas se a Matemática era recondutível à Lógica ([…]), sem que a Lógica, por seu lado, se afundasse numa psicologia que, sendo uma disciplina empírica, acabaria por destruir a sua validade absoluta e incondicionada, isso não esgotava, porém, a questão. Tudo se jogava na compreensão do teor da própria Psicologia que deveria ser chamada a esclarecer a relação entre objectividade conhecida e actividade de pensar. E é essa a inovação decisiva de Husserl. Para a fundamentação da Lógica pura, não interessava, certamente, uma Psicologia empírica e genético-causal, mas importava, sim, uma Psicologia eidética e descritiva, que regredisse sistematicamente da objectividade das formações lógicas até aos modos de consciência em que elas são dadas e se tornam acessíveis para o pensamento. Esta Psicologia de novo cunho, este estudo da consciência, não seria mais uma doutrina psicofísica, ou seja, uma teoria da consciência como objecto natural, mas antes um estudo da consciência de objecto, ou seja, da intencionalidade, nas suas estruturas de sentido; em segundo lugar, ela também não seria mais uma ciência empírica, mas antes uma teoria dos tipos essenciais puros da consciência objectiva enquanto tal, ou seja, uma doutrina das leis puras de essência, uma “ciência eidética”, como Husserl nos habituará a dizer. O conceito de uma Psicologia descritiva, tomado de Brentano, que serve, nas Logische Untersuchungen [Investigações Lógicas], como primeira caracterização da Fenomenologia, albergava em si uma maneira de ver a consciência que, na sua forma madura, a partir de 1907, conduziria da Psicologia à Fenomenologia transcendental. Desde 1904, aliás, que Husserl caíra na conta de que a Fenomenologia não era Psicologia descritiva. Tal é a inovação maior de Husserl contida nestas Investigações Lógicas – toda uma maneira de olhar a consciência que acaba, finalmente, por superar a sua objectivação psicológica.» Pedro ALVES, “Apresentação da Tradução Portuguesa”, in Edmund Husserl, Investigações Lógicas, Segundo Volume, Parte I: Investigações para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento. Tradução de Pedro M. S. Alves e Carlos A. Morujão, Lisboa, CFUL / FCT, 2007, pp.13-14.

 

Exercício de interpretação

a) Quais são os filósofos mencionados neste texto? Consultar uma entrada sobre vida e obra, a respeito de cada um deles.

b) Qual é a motivação originária da fenomenologia de Husserl, segundo este texto?

c) Como é que este texto equaciona a relação entre filosofia e ciência?

d) O que é que este texto considera ser “a inovação decisiva de Husserl”?

e) Em que é que consiste a passagem da psicologia à fenomenologia, segundo este texto?

f) Qual é a disciplina filosófica que a fenomenologia privilegia?

 

 

Texto 64

 

Maria Leonor XAVIER

 

«Urge, então, a questão: as tendências e correntes filosóficas, que dividem a filosofia, são diferenças acidentais a eliminar ou são diferenças inerentes e constituintes da filosofia, no seu exercício individual e desenvolvimento histórico?

A história da filosofia não atesta a favor do desaparecimento tendencial e progressivo deste tipo de diferenças. Antes pelo contrário, as tendências e correntes multiplicam-se com a diversificação e especialização das disciplinas da filosofia e com os desafios das novas questões que aí surgem. As tendências e correntes filosóficas nascem com as posições e doutrinas que se opõem em resposta a cada questão filosófica. Dada a constância com que realmente emergem, julgamos que as tendências e correntes filosóficas são diferenças inerentes à filosofia, no seu exercício individual e desenvolvimento histórico.

Mas porquê? Serão vícios a combater ou excrescências a erradicar, quais defeitos próprios do fabrico humano e falível da filosofia? Ou terão elas – as tendências e as correntes – algum sentido positivo na cultura filosófica?

Atentando bem, a pluralidade de tendências e correntes filosóficas desempenha, ao longo dos tempos, a função cautelar da máxima socrática – só sei que nada sei – i.e., elas evidenciam que nenhuma filosofia particular ou partilhada tem a posse total da verdade. Este é um ensinamento inestimável da pluralidade de tendências e correntes filosóficas.

As tendências e correntes em filosofia não se refutam umas às outras, antes denunciam as insuficiências umas das outras; cada uma delas acusa a insuficiência da sua oposta: tal é o papel que cada uma delas desempenha. Esse papel assegura-lhes um valor irredutível: o de acautelar a fidelidade da filosofia a si própria, mantendo-a no trilho, não da posse, mas da busca da sabedoria.» Maria Leonor XAVIER, “A Filosofia e a sua Pluralidade II: as correntes filosóficas”, Nova Águia. Revista de Cultura para o Século XXI, nº18 (2º Semestre, 2016), p.209.

 

Exercício de interpretação

a) A pluralidade de tendências e correntes pode ser eliminada em filosofia? Porquê?

b) Qual é o papel que este texto atribui à diversidade de tendências e correntes em filosofia?

 

 

 

3.3. A filosofia e a sua expressão: atitude, fala ou escrita?

 

 

3.3.1. A fala e a escrita

 

Texto 65

 

PLATÃO

 

«SÓCRATES: Pois ouvi contar que, perto de Náucratis, no Egipto, havia um daqueles deuses antigos do lugar, cujo símbolo sagrado era a ave a que chamam íbis. O nome dessa divindade era Theuth. Pois dizem que foi ele o primeiro a descobrir a ciência do número e do cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo das damas e o dos dados e sobretudo a escrita.

O rei de todo o Egipto nessa altura era Tamos, que habitava a grande cidade da parte alta do país que os Helenos chamam Tebas Egípcia e cujo deus é Âmon. Theuth foi até ao seu palácio, mostrou-lhe os seus inventos e disse que precisavam de ser distribuídos aos outros habitantes do Egipto. O rei, no entanto, perguntou-lhe que utilidade tinha cada um deles e, perante as explicações do deus, conforme lhe parecessem bem ou mal formuladas, a uma censurava e a outra louvava. Tão numerosas foram na verdade – ao que se diz – as observações que Tamos apresentou a Theuth, a favor e contra cada uma das artes, que seria tarefa longa referi-las em pormenor.

Quando, porém, chegou a ocasião da escrita, Theuth comentou: “Este é um ramo do conhecimento, ó rei, que tornará os Egípcios mais sábios e de melhor memória. Está pois descoberto o remédio da memória e da sabedoria”.

Ao que o rei responde: “Engenhosíssimo Theuth, um homem é capaz de criar os fundamentos de uma arte, mas outro deve julgar que parte de dano e de utilidade possui para quantos dela vão fazer uso. Ora tu neste momento, como pai da escrita que és, por lhe quereres bem, apontas-lhe efeitos contrários àqueles que ela manifesta. É que essa descoberta provocará nas almas o esquecimento de quanto se aprende, devido à falta de exercício da memória, porque, confiados na escrita, é do exterior, por meio de sinais estranhos, e não de dentro, graças ao esforço próprio, que obterão as recordações. Por conseguinte, não descobriste um remédio para a memória, mas para a recordação. Aos estudiosos oferece a aparência da sabedoria e não a verdade, já que, recebendo, graças a ti, grande quantidade de conhecimento, sem necessidade de instrução, considerar-se-ão muito sabedores, quando são ignorantes na sua maior parte e, além disso, de trato difícil, por terem a aparência de sábios e não o serem verdadeiramente.» PLATÃO, Fedro 274 c – 275 b. Tradução de José Ribeiro Ferreira, Lisboa, Edições 70, 2009, pp.119-121.

 

Exercício de interpretação

a) Como é que a invenção da escrita é útil ao conhecimento, segundo o deus Theuth?

b) Como é que a invenção da escrita pode prejudicar o conhecimento, segundo o rei Tamos?

c) Ter muitos livros é condição necessária de sabedoria? Justifique.

d) Ler muitos livros é condição necessária de sabedoria? Justifique.

e) O que é que este texto sugere ser condição necessária de sabedoria?

 

 

Texto 66

 

PLATÃO

 

«SÓCRATES: É isso precisamente, Fedro, o que a escrita tem de estranho e que a torna muito semelhante à pintura. Os produtos desta apresentam-se na verdade como seres vivos, mas, se lhes perguntares alguma coisa, respondem-te com um silêncio cheio de gravidade. O mesmo sucede também com os discursos escritos. Poderá parecer-te que o pensamento anima o que dizem; no entanto, se, movido pelo desejo de aprender, os interrogares sobre o que acabam de dizer, revelam-te uma única coisa e sempre a mesma. E uma vez escrito, cada discurso rola por todos os lugares, apresentando-se sempre do mesmo modo, tanto a quem o deseja ouvir como ainda a quem não mostra interesse algum. Não sabe, por outro lado, a quem deve falar e a quem não deve. Além disso, maltratado e insultado injustamente, necessita sempre da ajuda do seu autor, uma vez que não é capaz de se defender e socorrer a si mesmo.

FEDRO: Mais uma vez falaste com toda a justeza.

SÓCRATES: Mas quê? Vamos examinar outro discurso, irmão legítimo daquele, para ver como nasce e quanto a sua natureza é melhor e mais capaz do que a do outro?

FEDRO: Qual é o discurso de que falas?

SÓCRATES: Aquele que com conhecimento se escreve na alma de quem aprende, esse é capaz de se defender a si próprio e sabe falar e ficar silencioso diante de quem convém.

FEDRO: Estás a referir-te ao discurso de quem sabe, o discurso vivo e animado, de que o escrito se poderia considerar justamente uma imagem.

SÓCRATES: Pois absolutamente. […].

FEDRO: Magnífico é o passatempo de que falas, Sócrates, em comparação com a baixeza do dos outros: o passatempo do homem que possui capacidade de se deleitar com a composição de livros em que discorre sobre a justiça e outras virtudes por ti apontadas.

SÓCRATES: É de facto assim, meu caro Fedro. Mas, em minha opinião, muito mais bela se torna a ocupação nestas matérias, quando alguém, no uso da arte dialéctica, toma uma alma apta e nela planta e semeia discursos com entendimento – discursos capazes de vir em socorro de si mesmos e de quem os plantou, não improdutivos mas possuidores de gérmen, de que mais discursos nascem em outros temperamentos e podem tornar para sempre essa semente imortal, e assim conceder ao seu detentor o mais alto grau de felicidade que um ser humano pode ter.» PLATÃO, Fedro 275 d – 276 b, 276 e – 277 a. Tradução de José Ribeiro Ferreira, Lisboa, Edições 70, 2009, pp.122-123, 125.

 

Exercício de interpretação

a) Quais são os tipos de discurso visados neste texto?

b) Qual é o discurso que este texto considera vivo e aquele que não é senão uma imagem?

c) Como se relacionam, o discurso vivo e a sua imagem, com o autor?

d) Como se relacionam, o discurso vivo e a sua imagem, com o destinatário?

e) Com que finalidades é que este texto associa o discurso vivo e a sua imagem?

 

 

Texto 67

 

Paul RICOEUR

 

«A anterioridade psicológica e sociológica da fala sobre a escrita não está em causa. Apenas se pode perguntar se o aparecimento tardio da escrita não terá provocado uma mudança radical na nossa relação com os próprios enunciados do nosso discurso. Voltemos, com efeito, à nossa definição: o texto é um discurso fixado pela escrita. O que é fixado pela escrita é, pois, um discurso que poderia ter sido dito, é verdade, mas que se escreve, precisamente, porque não se diz. A fixação pela escrita surge no mesmo lugar da fala, quer dizer, no lugar em que a fala poderia ter nascido. Podemos, então, perguntar se o texto não é verdadeiramente texto quando não se limita a transcrever uma fala anterior, mas quando inscreve directamente na escrita o que quer dizer o discurso.

Aquilo que poderia dar peso a esta ideia de uma relação directa do querer-dizer do enunciado com a escrita é a função da leitura em relação à escrita. De facto, a escrita reclama a leitura segundo uma relação que, em breve, nos permitirá introduzir o conceito de interpretação. Por agora, digamos que o leitor ocupa o lugar do interlocutor, como, simetricamente, a escrita ocupa o lugar da locução e do locutor. Efectivamente, a relação escrever-ler não é um caso particular da relação falar-responder. Não é uma relação de interlocutor; não é um caso de diálogo. Não basta dizer que a leitura é um diálogo com o autor através da sua obra; é preciso dizer que a relação do leitor com o livro é de uma natureza completamente diferente; o diálogo é uma troca de perguntas e de respostas; não há troca desta espécie entre o escritor e o leitor, o escritor não responde ao leitor; o livro separa até em duas vertentes o acto de escrever e o acto de ler, que não comunicam; o leitor está ausente da escrita; o escritor está ausente da leitura. O texto produz, assim, uma dupla ocultação do leitor e do escritor; é deste modo que ele toma o lugar da relação de diálogo que liga, imediatamente, a voz de um ao ouvido do outro.

Esta ocupação do lugar do diálogo pela leitura é tão manifesta que, quando nos acontece encontrar um autor e falar-lhe (por exemplo, do seu livro), temos o sentimento de uma profunda reviravolta desta relação muito particular que temos com o autor na e pela sua obra. Às vezes, gosto de dizer que ler um livro é considerar o seu autor como já morto e o livro como póstumo. De facto, é quando o autor está morto que a relação com o livro se torna completa e, de certo modo, intacta; o autor já não pode responder, resta apenas ler a sua obra.

Esta diferença entre o acto da leitura e o acto do diálogo confirma a nossa hipótese de que a escrita é uma realização comparável à fala, paralela à fala, uma realização que ocupa o lugar dela e, de certo modo a intercepta. Foi por isso que pudemos dizer que o que aparece na escrita é o discurso enquanto intenção de dizer e que a escrita é uma inscrição directa dessa intenção, mesmo se, histórica e psicologicamente, a escrita começou por transcrever graficamente os signos da fala. Esta libertação da escrita que a coloca no lugar da fala é o acto de nascimento do texto.» Paul RICOEUR, “O que é um Texto”, in Do Texto à Acção. Ensaios de Hermenêutica II. Tradução de Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando, Lisboa, RÉS-Editora, s/d, pp. 142-143.

 

Exercício de interpretação

Considerando a ordem de prioridade entre a fala e a escrita:

a) Qual delas se dá primeiro?

b) Podem ambas ser discursos igualmente primitivos?

Comparando as relações que se estabelecem na fala e na escrita:

c) O autor está para a escrita como o locutor está para a fala? Diga as diferenças.

d) O leitor está para a escrita como o interlocutor está para a fala? Diga as diferenças.

e)O texto está para a escrita como o diálogo está para a fala? Diga as diferenças.

f) Entre os elementos postos em relação pela escrita, qual deles é mais valorizado neste texto? Justifique.

 

 

Texto 68

 

Roger CHARTIER

 

«A revolução do texto electrónico será também ela uma revolução da leitura. Ler num ecrã não será como ler num codex. Mesmo abrindo novas e inúmeras possibilidades, a representação electrónica dos textos altera completamente a sua condição: à materialidade do livro substitui a imaterialidade de textos sem lugar próprio; às relações de contiguidade, estabelecidas no objecto impresso, opõe a livre composição de fragmentos indefinidamente manipuláveis; à apreensão imediata da totalidade da obra, tornada visível pelo objecto que a contém, faz suceder a navegação de longo curso por arquipélagos textuais sem margens nem limites. Essas mutações comandam inevitavelmente, imperativamente, novas maneiras de ler, novas relações com a escrita, novas técnicas intelectuais. […]. A revolução que começou é, antes de mais, uma revolução de suportes e de formas que transmitem a escrita. Neste aspecto, tem apenas um único antecedente no mundo ocidental: a substituição do volumen pelo codex, do livro em forma de rolo pelo livro composto por cadernos encadernados, nos primeiros séculos da era cristã.

[…].

De entre os vários efeitos da passagem do rolo ao codex, dois merecem especial atenção. Por um lado, se o codex impõe a sua materialidade, não apaga as designações ou as representações antigas do livro. Em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, por exemplo, se o termo codex refere o livro enquanto objecto físico, a palavra liber é utilizada para marcar as divisões da obra, e isto mantendo a memória da antiga forma, visto que o “livro”, que se transformou aqui em unidade do discurso (A Cidade de Deus contém vinte e dois), corresponde à quantidade de texto que podia conter um rolo. […]. Por outro lado, para ser lido, portanto desenrolado, um rolo tem de se segurar com as duas mãos: daí, como demonstram os frescos e os baixos-relevos, a impossibilidade para o leitor de escrever ao mesmo tempo que lê e, assim, a importância do ditado em voz alta. É com o codex que o leitor conquista a liberdade: pousado em cima de uma mesa ou de uma escrivaninha, o livro em cadernos já não exige uma total mobilização do corpo. O leitor pode distanciar-se, ler e escrever ao mesmo tempo, passar à vontade de uma página para outra, de um livro para outro. […].

[…]. Desde o séc. XVI, isto é desde a época em que o tipógrafo se encarregou dos signos, das marcas e dos títulos, títulos de capítulos ou títulos comuns, que, na época dos incunábulos, eram acrescentados à mão na página impressa, pelo corrector ou pelo dono do livro, o leitor apenas pode escrever nos espaços virgens do livro. O objecto impresso impõe-lhe a sua forma, a sua estrutura, as suas disposições, e não pressupõe de modo algum a sua participação. Se o leitor pretende, porém, inscrever a sua presença no objecto, só pode fazê-lo ocupando, sub-reptriciamente, clandestinamente, os lugares do livro abandonados pela escrita: interiores da encadernação, folhas deixadas em branco, margens do texto, etc.

Com o texto electrónico, o mesmo não acontece. O leitor pode não só submeter o texto a múltiplas operações (pode fazer-lhe um índice, anotá-lo, copiá-lo, dividi-lo, recompô-lo, deslocá-lo, etc.), mas, mais ainda, pode tornar-se no seu co-autor. A distinção, fortemente marcada no livro impresso, entre a escrita e a leitura, entre o autor do texto e o leitor do livro, desaparece para dar lugar a uma outra realidade: aquela em que o leitor se torna num dos actores de uma escrita com várias vozes ou, pelo menos, se encontra em posição de criar um texto novo a partir de fragmentos livremente recortados e reunidos. […]. Torna-se assim compreensível que uma possibilidade destas ponha em dúvida e em perigo as categorias que nos pertencem para descrever as obras, ligadas desde o século XVIII a um acto criador individual, singular e original, e para criar o direito em matéria de propriedade literária.» Roger CHARTIER, A Ordem dos Livros. Tradução de Leonor Graça, Lisboa, Veja, 1997, pp.142-143, 145-148.

 

Exercício de interpretação

a) Quais são as formas de texto, quanto ao suporte, que este texto distingue?

b) Quais são as diferenças que, segundo este texto, distinguem o texto electrónico do texto impresso?

c) Como é, a título exemplificativo, a obra de Santo Agostinho, A Cidade de Deus, conserva memória da antiga forma de texto, o rolo?

d) Como é que o leitor “conquista liberdade” com o livro encadernado?

e) Como é que o livro impresso condiciona a liberdade do leitor?

f) Como é que o texto electrónico altera a condição do leitor?

g) Como é que o texto electrónico altera a condição do autor?

 

 

Texto 69

 

Fernando BELO

 

«2. Uma anedota pessoal, se se me permite. Conversava um dia com o meu amigo Augusto Joaquim a respeito do movimento monacal entre o Império Romano do Ocidente e a Europa medieval, dizendo que se tratava de ‘intelectuais’ que não tinham outra maneira de se sustentarem enquanto tal, a não ser pela reunião em mosteiros, preservando a cultura antiga que a mais ninguém interessava. Acrescentei: é como se houvesse agora uma catástrofe de que apenas sobrassem alguns países do Terceiro Mundo e alguns intelectuais se refugissem aí para sobreviverem com alguns dos maiores textos do Ocidente. O meu amigo interrompeu-me: é a situação em que estamos, a catástrofe já aconteceu, é a dominação tecnológica na nossa civilização. Percebi: teria sido esta a outra experiência de Heidegger, que desenvolveu em textos publicados após a guerra de 1939-45, na problemática do II Heidegger. A sua/ nossa questão: como habitar, com que arte de poeta, numa terra assim dominada?» Fernando BELO, Heidegger, pensador da Terra. 2ª ed. rev. e acres., Lisboa, CFUL, 2011, p.12.

 

Exercício de interpretação

a) Qual é a conexão que este texto estabelece entre os mosteiros da Antiguidade tardia e “alguns países do Terceiro Mundo” num cenário de catástrofe, imaginado no mundo actual?

b) Que obras podem ser conotadas com “alguns dos maiores textos do Ocidente”?

c) O que é que este texto anuncia sobre o conteúdo do livro de que faz parte?

 

 

3.3.2. A importância da escola

 

Texto 70

 

Joaquim CERQUEIRA GONÇALVES

 

«A escola-instituição é produto derivado, senão mesmo desviado, da escola-razão. Vê-se comummente a escola apenas como um fenómeno social, como se ponderosos factores de ordem racional não estejam na sua origem. É ainda a consequência da redução dela às estruturas humanas. A dimensão social é certamente uma das grandes expressões ontológicas, mas não pode ser dissociada da constituição do mundo. É exactamente a geração de sentido que aproxima e articula a realidade, ainda ao seu nível humano. Não admira, pois, que, onde se exercita a razão, as pessoas se associem e, por outro lado, que as estruturas comunitárias potenciem factores privilegiados de desenvolvimento dos valores racionais.

É esta inserção da sociedade na instância ser-no-mundo, a desenvolver nas suas máximas possibilidades de sentido, que deve estimular um outro sentido de escola, porventura menos institucionalizada, mas não menos consistente.

A noção de filosofia que se vem sugerindo aqui encontra-se com esta visão de escola, estando porventura aí a razão dos inextricáveis e recíprocos compromissos, entre uma e outra, no decurso dos séculos.

O cultivo da racionalidade intensifica sempre a universalidade, tanto em eixo vertical como horizontal. Filosofar é sempre contextualizar, tanto no aprofundamento da tradição como na irradiação horizontal do presente. A coordenação do trabalho de interpretação numa determinada circunstância, além de poder ser já resultado do processo de universalização da razão, pode representar também contributo privilegiado para o desenvolvimento das possibilidades do mundo. A escola é uma dessas estruturas de coordenação e produção de sentido, tudo indicando que a filosofia não possa dela prescindir. O que importa é que tanto a escola como a filosofia sejam obra da razão, não apenas decrépito resultado de um racionalismo que se casa bem com o formalismo escolar institucional e com o escolasticismo filosófico.

[…]

Mas tudo isto supõe, é claro, que na escola se cultive o que poderíamos designar de razão integral, não apenas reduzidas expressões ou alguma grotesca caricatura dela.

Se a razão não está apenas em função do homem, há, no entanto, interpretações dela que não são compatíveis com a vida do humano.

As escolas de hoje parecem debater-se com este dilema prático: laboratórios ou comunidade humana? Numas, não há espaço para esta, noutras, aqueles escasseiam.

Mas a grande questão é certamente outra, de que as questiúnculas entre laboratórios e comunidade não passam de sintomas seus: que tipo de saber deve cultivar-se na escola?

Os critérios de especialização seleccionam e fragmentam os saberes e, com eles, em boa medida, a razão. Sem se abdicar, contudo, dos benefícios da especialização, nenhuma escola deveria prescindir do horizonte largo do saber global, não tendo, entretanto, necessidade, para isso, de os cultivar a todos. Quer isto dizer, usando uma terminologia consagrada, que nenhuma escola deveria dispensar quer as ciências humanas quer as ciências da natureza.» Joaquim CERQUEIRA GONÇALVES, Fazer Filosofia: como e onde? Braga, Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, 1990, pp.96-98.

 

Exercício de interpretação

a) Dos vários seguintes termos – razão, ser, sociedade, sentido, mundo – qual é aquele que escolhe como sendo o mais originário, segundo este texto?

b) O que é que faz nascer a escola, segundo este texto?

c) O que é que distingue a «escola-razão» da «escola-instituição»?

d) Como é que este texto entende a relação entre a filosofia e a escola?

e) Comente a seguinte frase: “filosofar é sempre contextualizar”.

f) Qual é o conceito de escola que este texto defende?

g) Como é que este texto compreende o valor do saber a ser desenvolvido pela escola?

 

 

Texto 71

 

António FEIJÓ e Miguel TAMEN

 

«As ciências, constituídas e especificadas em disciplinas, estão decerto entre os mais altos feitos da espécie. A geologia formaliza, sob espécie conceptual e histórica, clara e distinta, uma parte da experiência e do mundo que, até à emergência e especificação dessa formalização disciplinar, se mostrou enigmática, sem uso, ou com um reduzido elenco de usos. O abandono ou a redução de uma disciplina científica são destrutivos de um domínio da ecologia racional da espécie, árdua e cumulativamente construído por gerações de investigadores. Até mesmo de um ponto de vista prático, tal negligência é imprudente, por não ser claro a que eventual situação futura, lesiva da espécie, a disciplina possa ser chamada a responder. A razão maior do valor da universidade é hoje relativamente imperceptível. Pode, no entanto, ser formulada de modo preciso, mesmo se num vocabulário quase desaparecido: a criação e a aprendizagem de uma disciplina científica induzem uma forma de contentamento intelectual, e são um bem em si mesmas.

É este valor que constitui o sentido da designação «artes liberais», dada pela universidade, desde o seu início, às disciplinas que a constituem. A designação «liberal» tem aqui um sentido preciso. Como, todavia, no nominalismo passional em que consiste o discurso público em Portugal toda a discussão sobre a natureza «liberal» de uma instituição ou prática rapidamente se torna incompreensível, convém estipular o sentido do termo. Na definição dada pelo cardeal Newman, na mais influente descrição moderna da ideia de Universidade, o conhecimento liberal «funda-se nas suas pretensões próprias, é independente de sequelas, não espera complemento, recusa-se a ser informado por qualquer fim, ou absorvido por qualquer arte prática, para devidamente se apresentar a si mesmo à nossa contemplação». Uma definição mais económica, a do filósofo britânico Michael Oakeshott, define «liberal», neste contexto, como significando «liberto da dispersiva actividade de satisfazer necessidades contingentes». O oposto de «liberal» é, pois, «servil» ou «regulado por um extrínseco fim prático». Este contraste poderá não ser imediatamente aparente: embora, como refere Newman, seja absurdo, do ponto de vista do mérito e da importância, comparar um tratado sobre fracturas ósseas com um jogo de andebol, este tem uma natureza «liberal» que aquele não tem.

Uma educação «liberal» é, como um de nós em outro lugar escreveu, a aprendizagem da participação naquilo a que se chama uma «cultura», termo habitualmente equívoco que, na definição de Oakeshott, denota «a totalidade daquilo que um conjunto associado de seres humanos criou para si mesmo, para além da satisfação evanescente das suas necessidades imediatas». A noção de «cultura», tal como nela se acolhem os domínios do saber estudados na universidade, denota aqui não uma doutrina, mas um «encontro conversacional» que pode ser, e muitas vezes é, argumentativo no tom. Cada disciplina ou domínio do saber constitutivo do conhecimento liberal, a geologia por exemplo, é uma linguagem específica unicamente acessível através da literatura particular que a fixa, e da exemplaridade e especificação do seu ensino por professores a alunos. Na definição de Oakeshott, uma cultura é o dissonante coro de vozes que num mesmo lugar se encontram e colidem numa conversa ininterrupta. A educação liberal é uma iniciação a essa conversa, a delimitação de um tempo em que os alunos ouvirão diferentes vozes e modos de enunciação, num espaço que deverá ser alheio a imperativos «práticos» que as conjunturas sempre, suposta e urgentemente, ditam. O que de importante se passa numa universidade ocorre num grupo de pessoas que falam entre si, durante um certo tempo, numa sala; em certos domínios do saber, as humanidades, por exemplo, o que nessa sala é dito muitas vezes diverge daquilo que é dito por um outro grupo de pessoas, reunido na sala ao lado. Esta disparidade tem, como veremos, implicação na natureza da investigação nas humanidades.

A estas posições poderá objectar-se que a Universidade actual, irreversivelmente envolvida com o Estado e a actividade económica, sob a forma de investigação científica e tecnológica aplicada, é incapaz de reassumir essa natureza «liberal», se alguma vez a teve. A investigação mais avançada em certos domínios científicos depende, em muitos casos, de fins civis (e militares, em sociedades mais industrializadas) que lhe determinam o âmbito e a financiam. O espectro desta dependência servil da investigação vai desde as ciências ditas exactas às ciências sociais e às humanidades, da obtenção de fins altruístas à obtenção de fins letais (de vacinas a armamento, da promoção da literacia à construção de modelos de organização política, por exemplo). Exemplo flagrante da adopção da utilidade imediata como critério é decerto a criação de um protótipo tecnológico. Mas, se um protótipo pode ser intencionado como tal desde o início da sua concepção, como modelo de um artefacto a ser produzido em larga escala em momento ulterior, a sua concepção e construção na universidade respondem à resolução de um problema conceptual ou técnico. A construção industrial desse protótipo não é uma actividade universitária, sendo a sua natureza de objecto-modelo indicativa dessa suspensão de utilidade. Mesmo que o resultado da concepção do protótipo seja o registo de uma patente, e a própria universidade a venha a explorar comercialmente, estes usos, embora legítimos, exorbitam os fins da instituição. Que a universidade deva procurar resolver os problemas que assediam a espécie é, evidentemente, desejável, e em muitos casos prioritário, mas a resolução de qualquer dessas questões é, neste âmbito, convém repeti-lo, um problema conceptual ou técnico só tornado inteligível no interior de uma disciplina.

A submissão a este apelo da utilidade como critério poderá parecer exclusiva das ciências exactas ou aplicadas. Mas não é o caso: as ciências sociais implicam-se consistentemente nos objectos que estudam, excedendo na análise o plano da descrição, e tornando-se o analista, deliberadamente ou não, parte do objecto (o que levanta o problema da sua «posicionalidade» face ao objecto analisado, dilema que antropólogos e sociólogos reiteradamente confrontam). No caso das humanidades, a prática do seu ensino muitas vezes trai o propósito de criar uma agenda política ou ética emancipatória, tal como ela é abusivamente exposta por professores ao auditório cativo dos seus alunos, parecendo ser esse, na actualidade, o exclusivo propósito de muito desse ensino. Em qualquer dos casos, o primado da prática e da utilidade, seja ele técnico, ético ou político, é dominante. Que dele tenha resultado a erosão, provavelmente irreversível, das humanidades, em países como os Estados Unidos da América, é decerto pouco surpreendente.» António M. FEIJÓ e Miguel TAMEN, A Universidade como deve ser. Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2017, pp.24-27.

 

Exercício de interpretação

a) Esclareça o conceito de «ecologia racional da espécie», que ocorre no início deste texto.

b) Qual é, segundo este texto, «a razão maior do valor da universidade»?

c) Explicite em que sentido se defende aqui que a universidade tem uma natureza «liberal»?

d) Explicite em que sentido se defende aqui que a universidade é o lugar onde se aprende a participar numa cultura?

e) Como é que se relacionam as ciências exactas ou aplicadas, as ciências sociais e as humanidades com a natureza da universidade?

 

 

Texto 72

 

Michael J. SANDEL

 

«O facto de as pessoas sem um diploma universitário não estarem praticamente representadas nos governos é um desenvolvimento da era meritocrática. Mas é um fenómeno inaudito. A observação de que isto equivale a um regresso a um tempo em que a maioria dos trabalhadores não tinha o direito de voto é mais do que pouco preocupante. O perfil dos atuais parlamentos europeus, fortemente associado a altas credenciais educativas, é semelhante ao perfil prevalecente no final do séc. XIX, quando o direito de voto dependia da posse de suficientes meios de fortuna (o chamado sufrágio censitário). Na Alemanha, na França, nos Países Baixos e na Bélgica, a maioria dos parlamentares entre meados e finais do século XIX possuía graus académicos.

Isto mudou no século XX, quando o sufrágio universal e a ascensão de partidos socialistas e sociais-democratas tornaram a composição dos parlamentos mais democrática. Entre as décadas de 1920 e 1950, havia números significativos de deputados sem um diploma universitário, constituindo entre um terço e metade dos legisladores. A partir da década de 1960, a proporção de titulares de diplomas começou a crescer novamente, e, por volta da década de 2000, as pessoas sem diplomas universitários tornaram-se tão raras nas legislaturas nacionais como nos tempos da aristocracia e da fidalguia rural.

Alguns podem argumentar que ser governado por diplomados universitários é algo que deve ser bem recebido e não lamentado. Obviamente queremos que as nossas pontes sejam construídas por engenheiros altamente qualificados e que médicos qualificados realizem as nossas apendicectomias. Então, porque não escolher representantes eleitos que tenham estudado nas melhores universidades? Os líderes com um elevado nível de instrução não têm mais probabilidades de nos oferecer políticas públicas sólidas e um discurso político mais sensato do que aqueles com menos qualificações?

Não, não necessariamente. Mesmo um olhar rápido para o lamentável estado dos debates políticos no Congresso norte-americano e nos parlamentos da Europa deveria fazer-nos refletir. A boa governação requer sabedoria prática e virtude cívica — a capacidade de deliberar sobre o bem comum e implementá-lo eficazmente. No entanto, nenhuma destas competências é particularmente bem desenvolvida na maioria das atuais universidades, mesmo naquelas que gozam do mais alto prestígio. E a recente experiência da história sugere que existe apenas uma correlação diminuta entre a capacidade de um bom julgamento político, o que requer integridade moral, bem como perspicácia, e a capacidade de obter boas notas em exames padronizados e ser admitido em universidades de elite. A noção de que «os melhores e os mais brilhantes» estão mais bem equipados para administrar os assuntos do Estado do que os seus concidadãos menos credenciados é um mito nascido da arrogância meritocrática.

[...].

A crença inabalável no credencialismo tem levado os eleitores da classe trabalhadora a inclinarem-se para partidos populistas e nacionalistas, e alargou a divisão entre os indivíduos com e sem formação universitária. Também originou uma crescente polarização partidária relativamente à questão do ensino superior, que é a instituição mais emblemática do projeto meritocrático. Ainda recentemente, em 2015, tanto os republicanos como os democratas declararam que as faculdades e as universidades tinham um efeito positivo para o país. Mas já não é assim. Hoje, 59% dos republicanos acreditam que as faculdades e as universidades têm um efeito negativo sobre o que acontece no país, com apenas 33% partilhando uma opinião positiva em relação ao ensino superior. Os democratas, por seu lado, acreditam de forma esmagadora (67% contra 18%) que as faculdades e as universidades têm um efeito positivo para o país.

Uma das prováveis vítimas do triunfo da meritocracia é a perda de um apoio público generalizado ao ensino superior. A universidade, em tempos vista como uma fonte de oportunidades, tornou-se, pelo menos para alguns, um símbolo de privilégio credencialista e arrogância meritocática.

A culpa disto deve-se, em parte, à retórica da ascensão social, com a sua ênfase unilateral na educação como a solução para a desigualdade. Construir uma política em torno da ideia de que um diploma universitário é uma condição necessária para se obter um trabalho respeitável e estima social tem um efeito corrosivo na vida democrática. Desvaloriza as contribuições daqueles que não têm um diploma, promove preconceitos contra os membros menos instruídos da sociedade, exclui, na prática, a maioria dos trabalhadores do governo representativo e provoca uma reação política adversa.» Michael J. SANDEL, A Tirania do Mérito. O Que Aconteceu ao Bem Comum? Tradução portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 2022, pp.118-119, 125-126.

 

Exercício de interpretação

a) Esclareça o conceito de «credencialismo» presente neste texto.

b) O que é que caracteriza a «era meritocrática», segundo este texto?

c) Como é aqui entendida a universidade?

d) O que tem de mal a meritocracia?

e) Como combater os efeitos socialmente corrosivos da meritocracia, sem destruir os valores da educação e do mérito?

 

 

Texto 73

 

Michael J. SANDEL

 

«Uma meritocracia perfeita seria justa?

Imaginemos que um dia conseguimos remover todos os obstáculos injustos ao sucesso, para que todos, incluindo os de origens humildes, pudessem competir em igualdade de condições com os filhos dos privilegiados. Imaginemos que, na prática, conseguíamos realizar aquilo que proclamamos como um princípio, que todos os cidadãos deveriam ter as mesmas oportunidades de ascenderem até onde os seus talentos e trabalho árduo os levassem.

Evidentemente que seria difícil tornar realidade uma tal sociedade. Superar a discriminação não seria suficiente. A instituição da família complica o projeto de dar a todos uma oportunidade igual. Não é fácil contrabalançar as vantagens que os pais ricos podem dar aos seus filhos, e não estou a pensar principalmente na riqueza herdada. Isso poderia ser resolvido através de um imposto sucessório eficaz. Estou a pensar nos meios quotidianos através dos quais os pais conscienciosos e abastados ajudam a sua prole. Mesmo o melhor e mais inclusivo sistema educativo teria uma grande dificuldade em preparar alunos de meios pobres para competir em igualdade de condições com aqueles cujas famílias os cumulam de atenção, recursos e ligações.

Contudo, suponhamos por um momento que isto pode ser feito. Suponhamos que podemos cumprir a promessa de dar a cada criança as mesmas oportunidades para competir pelo sucesso na escola, no trabalho e na vida. Isso seria suficiente para tornar uma sociedade justa?

É tentador dizer: «Sim, claro que sim. Não é precisamente isso em que consiste o sonho americano, criar uma sociedade aberta e móvel, onde o filho de um trabalhador agrícola ou de um imigrante sem um tostão pode ascender e tornar-se um diretor-executivo?» Embora os norte-americanos tenham uma atração especial por este sonho, este ideal também encontra ecos nas sociedades democráticas de todo o mundo.

Uma sociedade totalmente móvel é um ideal inspirador por duas razões. Em primeiro lugar, expressa uma certa noção de liberdade. O nosso destino não deve ser determinado pelas circunstâncias do nosso nascimento, mas deveríamos ser capazes de o decidir por nós próprios. Em segundo lugar, refere-se à esperança de que aquilo que alcançarmos seja um reflexo daquilo que merecemos. Se tivermos a liberdade de ascender com base nas nossas escolhas e capacidades, parece justo dizer que aqueles que têm sucesso merecem-no.

No entanto, por muito poderoso que este atrativo possa ser, existem dúvidas razoáveis de que mesmo uma meritocracia perfeitamente realizada seria, de facto, uma sociedade justa. Antes de mais, é importante notar que o ideal meritocrático se refere à mobilidade e não à igualdade. Não diz que há algo errado com os profundos fossos entre ricos e pobres; apenas insiste que os filhos dos ricos e os filhos dos pobres deveriam poder trocar de lugar ao longo do tempo, com base nos seus méritos — ou seja, ascender ou descender em resultado dos seus esforços e talentos. Ninguém deveria ficar preso no fundo da pirâmide ou entrincheirado no topo devido a preconceitos ou privilégios.

Numa meritocracia, o mais importante é que todos tenham oportunidades iguais de subir a escada do sucesso; nada diz sobre qual deveria se a distância entre os degraus da escada. O ideal meritocrático não é um remédio para a desigualdade, mas uma justificação da desigualdade.

Por si só, este não é um argumento contra a meritocracia. Mas acaba por levantar uma questão: a desigualdade que resulta da concorrência meritocrática é justificada?Os defensores da meritocracia respondem afirmativamente: desde que todos concorram em pé de igualdade, o resultado é justo. Mesmo uma competição justa produz vencedores e perdedores. O que importa é que todos comecem a corrida na mesma linha de partida, tendo tido igual acesso a oportunidades de formação, treino físico, nutrição e assim por diante. Neste caso, o vencedor da corrida merece realmente o prémio. O facto de alguns correrem mais rápido do que outros não significa injustiça.

 

Merecemos os nossos talentos?

Se este argumento é convincente ou não, depende do estatuto moral atribuído aos talentos. Recordemos a retórica da ascensão, que desempenha um papel tão importante no discurso público nos nossos dias. Por mais humildes que sejam as nossas origens, os políticos proclamam que todos nós deveríamos ser capazes de ascender até onde as nossas capacidades e trabalho árduo nos levarem. Mas porquê exactamente tão longe? Porquê assumir que os nossos talentos deveriam determinar o nosso destino e que merecemos as recompensas daí resultantes?

Pode questionar-se esta suposição por duas razões. Em primeiro lugar, o facto de eu possuir esta ou aquela capacidade não é resultado do meu esforço, mas um acaso da sorte, e é por isso que não sou merecedor dos benefícios (ou fardos) resultantes da sorte. Os meritocratas reconhecem que não mereço os benefícios que se devem ao facto de ter nascido no seio de uma família rica. Mas, então, por que razão deveriam outras formas de circunstâncias afortunadas — tais como possuir um dom natural — ser consideradas de forma diferente? Se eu ganhasse um milhão de dólares na lotaria, ficaria muito feliz com a minha sorte. Mas seria insensato afirmar que mereci essa fortuna inesperada ou que esse prémio teve alguma coisa que ver com o meu mérito. Da mesma forma, se eu comprar um bilhete de lotaria e não ganhar nenhum prémio, posso ficar desapontado, mas não me posso queixar de que me foi negado algo que eu merecia.

Em segundo lugar, o facto de eu viver numa sociedade que valoriza os talentos e as capacidades que por acaso possuo não é algo pelo qual eu possa reclamar mérito algum. Também isto é uma questão de boa sorte. LeBron James ganha dezenas de milhões de dólares como jogador de basquetebol, um desporto imensamente popular. Para além de ter sido abençoado com prodigiosos dons atléticos, LeBron tem a sorte de viver numa sociedade que os valoriza e recompensa. Não foi por nenhum mérito seu que ele vive nesta época, em que as pessoas adoram o desporto no qual ele brilha, e não na Florença renascentista, quando os pintores de frescos, e não os basquetebolistas, eram mais procurados.

O mesmo se pode dizer daqueles que se destacam em ocupações que a nossa sociedade valoriza menos. O campeão mundial de braço de ferro pode ser tão bom no seu desporto como LeBron James é no basquetebol. Não é culpa sua que, com exceção de uns quantos clientes em bares, ninguém queira pagar para o ver derrubar o braço do adversário sobre a mesa.

Em grande parte, o apelo da crença na meritocracia reside na ideia de que o nosso sucesso é feito por nós, pelo menos havendo as condições certas. Na medida em que a economia é um terreno de competição equitativa, não contaminada por privilégios ou preconceitos, somos responsáveis pelo nosso destino. Temos sucesso ou fracassamos com base nos nossos méritos. Recebemos o que merecemos.

Esta é uma visão libertadora, porque sugere que podemos ser agentes humanos que vencem por si sós, que somos os autores do nosso destino, os mestres do nosso fado. Também é moralmente gratificante, porque sugere que a economia pode responder à antiga noção de justiça de dar às pessoas o que elas merecem.

Todavia, se admitirmos que não fomos nós que criámos os nossos talentos, esta imagem de agentes autossuficientes torna-se mais complicada. Isto lança dúvidas sobre a crença meritocrática de que basta superar preconceitos e privilégios para criar uma sociedade justa. Se os nossos talentos são dons pelos quais devemos dar graças — seja ao acaso da lotaria genética ou a Deus —, então é um erro partirmos do princípio de que merecemos os benefícios daí decorrentes.» Michael J. SANDEL, A Tirania do Mérito. O Que Aconteceu ao Bem Comum? Tradução portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 2022, pp.145-148.

 

Exercício de interpretação

a) Como é que a meritocracia, tal como é aqui descrita, se articula com os valores da liberdade e da justiça?

b) Como é que a meritocracia, tal como é aqui descrita, se articula com os valores da mobilidade e da igualdade?

c) O que há para além do mérito ou demérito nas nossas vidas, segundo este texto?

d) Apesar de ser um tema omisso neste texto em particular, qual a importância da escola para aprendermos a lidar com tudo isso?

 

 

Texto 74

 

Pedro CALAFATE

 

«Estabelecida a filosofia no plano da sua própria constituição, a reforma de 1957 pode considerar-se como “um divisor de águas”, abrindo caminho a uma pluralidade de correntes que hoje se manifestam em dinamismo criador, acentuado, aliás, pela vinda de professores convidados estrangeiros.

Com efeito, entre as novas correntes do saber filosófico introduzidas a partir do dinamismo possibilitado por esta reforma, sublinhamos a particular relevância adquirida, no Departamento de Filosofia da FLUL, pelo pensamento filosófico alemão, que tanto ficou a dever ao magistério do professor da Universidade Complutense de Madrid, Oswald Market, que exerceu entre nós nos anos de 1963-1967.

Discípulo mental de Kant, do idealismo e do romantismo alemão, Market criou no Departamento de Filosofia uma linha de investigação e de docência que teve e tem continuidade em professores como Manuel do Carmo Ferreira, Leonel Ribeiro dos Santos e José Barata-Moura, independentemente da pluralidade de interesses e perspectivas intelectuais que individualmente cultivam, aberta também a outros domínios dentro do vasto âmbito dos problemas filosóficos. O estudo e a docência em torno de Kant e do idealismo alemão é seguramente uma das marcas de identidade, nas últimas décadas, do Departamento de Filosofia, com continuidade em docentes mais novos como Viriato Soromenho-Marques, salvaguardando também a diversidade de interesses que tem cultivado no seu percurso académico, como é o caso da filosofia da natureza e do ambiente.

Outra das linhas marcantes deste Departamento foi e é, ao que me parece, a investigação em torno do pensamento filosófico português, que tinha conhecido um progresso assinalável, [...], desde os tempos de Moreira de Sá, nomeadamente com a já referida tradução e publicação de textos fundamentais da nossa tradição filosófica, sendo elevado a um mais alto patamar de exigência com Francisco da Gama Caeiro, que dedicou parte relevante do seu labor de investigador e mestre à questão da radicação cultural da filosofia, abrindo caminho para a valorização do pensamento filosófico de tantos autores portugueses, partindo de Santo António até Leonardo Coimbra.

[...]

Os estudos e a docência de Gama Caeiro, bem como a sua propensão natural para a formação de gerações mais jovens, criaram as condições para a reunião de uma vasta equipa de investigadores de todas as Universidades portuguesas, sob a direcção do autor destas linhas e com o apoio decisivo do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, de que viria a resultar a História do Pensamento Filosófico Português, como primeira tentativa de estabelecer, em termos universitários, a tradição do nosso pensamento num espaço articulado de diferenças. [...]

Também a Lógica, cuja tradição sempre havia sido bastante forte no Departamento de Filosofia desde Mattos Romão, e sobretudo Vieira de Almeida e Edmundo Curvelo, continuou em plano destacado, sobretudo com o magistério de M.S. Lourenço, ao longo das três últimas décadas do século XX e nos primeiros anos do século XXI, a quem justamente se reconhece a introdução da filosofia analítica de tradição anglo-saxónica na Universidade Portuguesa, bem como da filosofia da matemática, que deram corpo aos seus cursos ministrados tanto a nível de licenciatura como de pós-graduação.

[...]

Entre as tendências mais recentes, a Fenomenologia não deixou de merecer, a partir de finais da década de 1970, a necessária atenção dos professores de Filosofia da FLUL. Permanecendo longo tempo arredada do horizonte intelectual dos portugueses, começou a merecer maior atenção devido à obra e magistério de mestres de outras universidades portuguesas, nomeadamente ao professor Júlio Fragata, da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Braga e director da Revista Portuguesa de Filosofia na viragem das décadas de 1950 para 1960, ou Alexandre Morujão, da Universidade de Coimbra, a que deve também associar-se os nomes de Gustavo Fraga (U. Açores) e de Eduardo Soveral (FLUP). No caso da FLUL, importa referir Maria Manuela Saraiva e João Paisana, como mestres mais antigos, [...].» Pedro CALAFATE, “Filosofia”, in António Nóvoa (Dir.), Sérgio Campos Matos e Jorge Ramos do Ó (Coord.), A Universidade de Lisboa nos Séculos XIX e XX. Vol. II, Lisboa, Tinta-da-China, 2013, pp.946-949.

Ver página de Memória do Departamento de Filosofia: aqui

 

Exercício de interpretação:

a) Faça um levantamento dos nomes mencionados de professores do Departamento de Filosofia, e indique a importância que tiveram respectivamente para o desenvolvimento dos estudos filosóficos na FLUL.

b) Como é possível caracterizar o Departamento de Filosofia da FLUL, de acordo com este texto, quanto à presença de escolas ou correntes filosóficas?

 

 

 

 

 

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